sábado, 6 de julho de 2013

Parto, manifestações e estágios de consciência

Cláudia Rodrigues







Li em uma lista de discussão sobre parto o depoimento de uma mulher que havia parido em casa, orgulhando-se de desvincular o parto de outras ações ecológicas como usar fraldas de pano, poupar o meio ambiente, investir contra a publicidade infantil. Para ela, parir linda em lençóis de seda e ganhar joias caríssimas do marido como prova de amor não eram contradições, mas escolhas. Para ela ter dinheiro seria um estado psicológico. Foi aplaudida.
No livre mercado é assim, o sujeito pode até ser filiado a um partido de esquerda, que visa priorizar minorias, mas ser ele próprio um consumista, afinal lutou para chegar lá, para ser superior, maior ou o que se acredita ser melhor, mais apto, mais sortudo, mais competitivo, mais Lei de Gerson. Manda quem pode, obedece quem merece, o importante é escolher e levar vantagem em tudo. http://www.youtube.com/watch?v=J6brObB-3Ow
Na prática o que temos, o que somos e principalmente o lugar que habitamos não corresponde bem a essa lógica, pelo menos não mais. Nem com extermínio de populações inteiras essa lógica funcionaria. Quem seriam os exterminados? Quem seriam os exterminadores? A Terra explorada como foi e continua sendo já dá sinais de cansaço crítico e esse cansaço tem a ver sim com a visão antiecológica em todos os setores. Do microcosmo pessoal, familiar, ao microcosmo político e econômico mundial está tudo junto e misturado.

 Ainda que se possa afirmar que temos direito a contradições e exceções- e temos, devemos lutar por isso-, não dá para ser anarquista de direita, nem esquerdista capitalista.  Parte importante da sociedade que está nas ruas em manifestações só pensa em benefício próprio e não consegue ver vínculos no que tem com o que o outro não tem. Como o parâmetro para cima está nas alturas, todos acham que têm pouco, precisam mais e pouco se importam que o pouco para alguns é falta de água potável para beber. Há médicos brasileiros que estão muito preocupados com a importação de colegas estrangeiros, afirmam convictos que só não vão para o interiorzão do país porque falta tecnologia no interior, porque julgam salário de 10 mil reais muito baixo, porque gostariam de ter mais garantias no emprego, desafios, afinal médico não tem como função ensinar a ferver água para beber ou fazer horta comunitária. Obviamente estão centrados em seus interesses pessoais, está claro que o espírito desses médicos em nada se assemelha ao do sujeito que se candidata a trabalhar como “médico sem fronteiras”. De qualquer forma, ainda que todo o interior do Brasil fosse super equipado com hospitais de ponta, coisa que está longe de acontecer, para um médico que prima por altíssimos salários , garantias mil e equipamentos tecnológicos, o interior do Brasil não vai interessar; faltariam pizzarias, cinemas, shoppings, montadoras, empresas de engenharia, supermercados modernos, vias de acesso e claro, lençóis de seda e joalherias.

Como um médico tecnicista, com mais confiança em equipamento do que conhecimento de gentes, faria para atender um parto complicado, demorado, de uma mãe muito amedrontada, por exemplo? Como ajudar a mulher a parir se ele aprendeu que tem que cortar, puxar ou fazer uma cirurgia ao primeiro “ui” depois de oito horas de trabalho de parto? O coitado precisaria chamar a parteira!

O problema eixo do mundo atual é tecnologia de ponta ou excesso de tecnologia, mau uso da tecnologia, desumanização em larga escala?
Se não queremos Belo Monte, se estamos em prol de uma vida mais sustentável, não seria o Brasil terreno fértil para projetos em escalas pequenas, em correção aos excessos que vemos nas grandes cidades?
 Não. Até na energia eólica a coisa é mal feita e sob os princípios da macroeconomia. Não é vantajoso economicamente fazer milhares de pequenos parques eólicos com baixíssimo impacto ambiental. Não lava dinheiro suficiente. Os parques são enormes, entram na grande rede, não colaboram em nada para sequer atenuar a conta de energia dos municípios em que são instalados. Alimentam economicamente as multinacionais envolvidas, as politicagens do meio. É claro que hidrelétricas têm impacto ainda maior e se fossem pequenas hidrelétricas seria melhor para o ser humano e para o meio ambiente, mas isso não interessa ao mercado, que tem na concentração de renda a sua única lógica. Fico sempre lembrando do Delfim Neto que na década de 1970 não parava de repetir que primeiro era preciso juntar o bolo para depois repartir.  Que bolo deu!
O problema do princípio macroeconômico é que ele destrói tudo o que é singular e pequeno, o que é espontâneo e delicado, seja na medicina, na comunicação, no direito, na engenharia, na geologia, na química, no transporte, na arte, em tudo. Todos aprendemos que devemos crescer muito, sem controle, competir até explodir, nem que seja à base de antidepressivo, se ciclar para cima aí tem a ritalina. Até que alguém lá na frente, um dia, quem sabe, resolva repartir ou horizontalizar, como proclamam os jovens do MPL.
 A fotografia da nossa doença social está nos corpos obesos, expressão corporal humana que melhor exemplifica nossa cultura submetida ao império norte-americano. Quanto mais obesos em uma ponta, mais miseráveis famintos em outra, visão clara de um desequilíbrio que criticamos até onde a água bate na nossa cintura, aí é um salve-se quem puder. O que os condomínios de luxo têm a ver com aqueles casebres que sempre se erguem a alguns poucos quilômetros de distância?
Os que têm privilégios e são bonzinhos costumam dizer que o ideal seria que todos tivessem privilégios semelhantes, mas são capazes de rugir na hora de pagar bem uma empregada doméstica. Abrir mão de seus direitos adquiridos nem de longe é opção. Os que não têm privilégios querem o seu quinhão e se o que pagam de impostos enxergam como bolsa para famintos, logo tratam de desfazer dos famintos, chamando-os de folgados, essa gente que precisa ser ensinada a pescar e não a ganhar peixe. Claro, porque linha e anzol é um bem adquirido que cai do céu para todo vivente que acabou de nascer lá no último barraco nos canfundós do Brasil.

A questão não se encerra apenas na crítica à senhora que só quer se dar bem em suas escolhas "inteligentes", ao senador que usa jatinho, aos jogadores de futebol que alimentam o narcofutebol com seus salários suntuosos, mas saber quantas das pessoas que criticam a concentração de renda estão realmente dispostas a praticar uma melhor distribuição de renda, porque obviamente não dá para cada ser humano do planeta ter um jatinho ou um salário capaz de comprar dezenas de imóveis por ano. A Terra já está ficando inabitável com os jatinhos que existem, com a exploração imobiliária que já está aí, com o excesso de energia que já desperdiçamos, com o excesso de automóveis que já utilizamos. A promessa do capitalismo de que um dia todos terão de tudo porque o bolo será grande o bastante para repartir está mais do que furada.
 O terceiro estágio de consciência, de que falou Paulo Freire, seria o da ação. O primeiro seria incômodo, o segundo seria o pensamento sobre esse incômodo e o terceiro a ação em cima desse incômodo. Entramos claramente no primeiro passo, começam as massas mundialmente a se manifestar, incomodam-se com os que têm, quiçá com inveja ainda, dão uma olhada para os que não têm, uma olhada incômoda, desprezível talvez. Sonham em tirar numa loteria, imaginam-se ricaços em jatinhos nas ilhas já não virgens.
Há quem pense sobre o incômodo, esses estão deitados em camas fofas feitas de derivados de petróleo. Rezam ou torcem para que dê tempo de seus filhos desfrutarem aqui e ali de uma herança, crentes na manutenção do velho mundo corrupto do jeito que sempre foi e sempre será.  Os céticos cerebrais são quase felizes, se não fosse o problema dos aeroportos lotados que encrencam suas viagens de férias, nem teriam do que reclamar. Mantêm uma relação íntima com o mercado, caem como patos em muitos dos ditames e chavões, amam uma medicina invasiva, seguem todas as premissas da mídia corporativa, idolatram vacinas, compram até vale-morte pela crença na segurança de uma vida saudável e jovem para sempre. Mulheres de 50 anos operam seus rostos para parecer que têm 30, tomam hormônios para sentirem-se como se tivessem 30 anos, homens tomam remédios para evitar calvície, ficam impotentes, mas quem se importa? O que vale não é ser, ter tesão, andar com desejo por aí, mas parecer bem, aparecer bem na foto, “nada pode parecer natural”, como proferiu Bertold Brecht.

 Agora, já existem os que estão na ação, unindo ações, pequenas ações na agricultura orgânica, nas hortas urbanas, na comunicação, na medicina, no direito, no transporte, em todas as áreas aqui e ali eles se movem em seus formigueiros cheios de vida, convictos de que menos é mais. São considerados loucos, utópicos, sonhadores, adoradores da lua, ingênuos, entre outras denominações menos românticas, às vezes cruéis. Dão de ombros, há muito a ser feito, eles têm consciência de que a destruição é para todos e a construção deve ser em escala de menor a maior. Entre ajudar a destruir ou construir, optam pela construção. Não são tão mansos quanto parecem, olham de longe os pastores com as ovelhas e sabem muito bem onde ficam as tocas dos lobos.

Assista o vídeo: http://www.youtube.com/watch?v=VOMWzjrRiBg&feature=share


2 comentários:

  1. Excelente!
    Rosina Duarte Mendonça Deeke

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  2. na mosca... mas polêmico também, porque sempre teremos contradições, todos todos... a diferença está em quem se nega a enxergar e até bate no peito com orgulho que tem tal e tal contradição mesmo, e não tem a menor intenção de refletir... e outros seguimos nas nossas vidas contraditórias dentro da matrix capitalista, mas lutando por iniciativas de formiguinha que sejam...
    mas no fundo, there's no tomorrow: http://www.youtube.com/watch?v=VOMWzjrRiBg

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