sábado, 8 de agosto de 2009

Um santinho para os japoneses

Por Cláudia Rodrigues
Um santinho para os japoneses Fertilização intensiva em campos de golfe contamina água por nitratos e provoca o aumento dos casos de câncer gástrico no mundo Cláudia Rodrigues, especial para o Já Conhecido como terra do sol nascente, país invejável em questões sanitárias, famoso pela saúde de sua população, o Japão foi o último lugar do planeta a apresentar pessoas contaminadas pelo vírus do HIV quando a maioria dos países já exibia números alarmantes. Hoje pesa sobre sua fama de lugar sadio a maior incidência de câncer gástrico no mundo. São 780 casos para cada 100.000 habitantes em todo o país, segundo a Organização Mundial de Saúde. Doença que sempre existiu, inclusive entre os japoneses, o câncer gástrico esteve e ainda está associado à dieta rica em sal, mas nos últimos anos cresceu a ponto de ser o segundo mais freqüente no mundo, com 800.000 novos casos por ano. No Brasil, segundo o Instituto Nacional do Câncer (INCA), o câncer gástrico é a segunda maior causa de mortes por câncer: 12,1 casos por 100.000 habitantes. Como a maioria dos cânceres, é decorrente de vários fatores que vão da consangüinidade ao abuso de tabaco e álcool. O gástrico, entretanto, é mais comum em pessoas que mantêm uma dieta pobre em vitaminas A e C; e tem nos nitratos que vão parar no estômago um grande vilão. Os nitratos sempre estiveram presentes na dieta humana mas, nos últimos anos, com a larga escala de industrialização dos alimentos, manifestaram-se em maiores quantidades, tanto por meio dos embutidos, enlatados e conservados em sal, quanto pelo aumento das fertilizações agrícolas à base de NPK (símbolo químico do nitrogênio, fósforo e potássio), que visam acelerar o crescimento das plantas. Com um agravante moderno: nos campos de golfe, segundo a The U.S. Environmental Protection Agency (EPA), usam-se de quatro a sete vezes mais fertilizantes do que no cultivo de alimentos. Por coincidência, o Japão é o país que mais construiu campos de golfe nos últimos anos. Há dez anos eram 100 campos de golfe, hoje são 2.580 campos. Na Ásia o golfe foi o esporte que mais cresceu e, dos 30 milhões de jogadores, 20 milhões são japoneses. Os campos de golfe no Japão são construídos em cima das montanhas, cujos picos são rebatidos para a construção de terraplanagens gigantescas. Logo se utilizam toneladas de tratamentos à base de fertilizantes nitrogenados para plantar a grama e depois conservá-la em estado ideal para a prática do esporte. O Japão, apesar de seu tamanho -- 377.815 km², área semelhante a do Estado do Mato Grosso do Sul --, tem hoje 36% dos campos de golfe do planeta, ficando atrás apenas dos Estados Unidos que, numa área de 9.372.614 km², concentram 43% dos campos de golfe. A participação do Japão no consumo mundial de fertilizantes é de 1,4%, extremamente alta para o tamanho do país. Quarto do mundo, o Brasil tem uma participação de 4,2% no ranking desse consumo liderado pelos Estados Unidos. A bactéria da hora A medicina ainda não vinculou o câncer gástrico ao consumo de água contaminada por nitratos. Segundo a nova tendência médica de ligar o câncer a causas bacteriológicas e tratá-lo com antibióticos preventivos, partiu curiosamente do Japão a tese (UEMURA.; 2001) mais difundida entre os especialistas em gastrenterologia a respeito da alta incidência de câncer gástrico no mundo: a bactéria Helicobacter pylori estaria associada ao câncer gástrico em 2,9% dos pacientes com idade média de 50 anos e que foram acompanhados por 7,8 anos no Japão. Nenhum dos pacientes não infectados pela H. pylori apresentou câncer gástrico. As estimativas mundiais sobre a infecção pela H. pylori são polêmicas: cerca de 50% da população mundial está infectada por ela. A Agência Internacional para Pesquisa sobre o Câncer (IARC), na França, atribuiu uma maior incidência da bactéria nos países em desenvolvimento. No Brasil calcula-se que sejam 70% e na África passa dos 90%. O continente africano, entretanto, apresenta incidência baixa de câncer gástrico e baixíssimo consumo de fertilizantes na agricultura, não chegando a constar na lista dos vinte primeiros divulgada pela OMS. Campos de golfe na África não são comuns exceto no sul do continente. Continuam as obras do campo de golfe no resort do Costão do Santinho O câncer gástrico está sendo apontado, a partir de estudos geológicos, geográficos e químicos, como a doença que vai atingir em massa a população do norte da ilha de Florianópolis, num prazo estimado de dois anos e meio após o início das fertilizações necessárias para o campo de golfe de 570 mil metros quadrados a ser inaugurado em 2006 pelo famoso Resort Costão do Santinho, que bancará o empreendimento orçado em cerca de R$ 25 milhões. O motivo seria a exposição da população à água contaminada proveniente do Aqüífero dos Ingleses, que passa embaixo do campo e não tem qualquer camada rochosa ou argilosa de proteção. Nos Estados Unidos a água do solo sob quatro campos de golfe foi analisada durante três anos (COHEN et.al.; 1990). O resultado para quantidade de nitratos dos solos de Cape Cod, Massachusetts, compostos 95% por terrenos arenosos, extremamente semelhantes ao do Aqüífero dos Ingleses, segundo o geólogo Luiz Fernando Scheibe, da UFSC, foi considerado muito elevado em comparação à água de solo semelhante sem campos de golfe na superfície. Excesso de nitrato na água pode causar, além do câncer gástrico, visão turva, tontura e a síndrome da doença azul, cianose infantil, doença mortal para crianças com menos de um ano de idade. Estudos preliminares e independentes de impacto ambiental, anteriores ao início das obras do campo de golfe do Costão do Santinho, foram cruzados pelos pesquisadores catarinenses, o geólogo Luiz Fernando Scheibe, a geógrafa Eliane Westarb e a engenheira química Cristina Nunes. Eles atestam que a situação emergente de um campo de golfe em cima do Aqüífero dos Ingleses é de alto risco para a saúde da população local. “A função social importante é assegurar o abastecimento de água para as 130 mil pessoas que bebem a água proveniente do Aqüífero dos Ingleses. Embora haja compromisso da empresa de utilização absolutamente controlada e monitoramento constante dos fertilizantes, sempre existe a possibilidade de contaminação, o solo do Aqüífero dos Ingleses é de vulnerabilidade alta à crítica”, alerta o geólogo Luiz Fernando Scheibe. Os documentos com os pareceres dos três estudiosos já foram encaminhados para o Ministério Público Federal de Santa Catarina. Diante das evidências a procuradora Ana Lucia Hartmann pediu embargo das obras, que foi surpreendentemente vetado pelo juiz Carlos Alberto da Costa Dias. Nesta semana Eliane Westarb e Cristina Nunes têm reunião marcada para apurar com o juiz Carlos Dias os motivos que o levaram a não ter concedido o embargo pedido pela procuradora diante do risco para a saúde da população. As obras do campo de golfe no Resort Costão do Santinho continuam em ritmo normal. “Estamos confiantes a respeito do projeto e esperamos as definições, não há razão para parar ou acreditar que perderemos a causa”, garante Silvio Elias, assessor de Fernando Marcondes de Mattos, diretor-presidente do resort que não pôde prestar declarações sobre o assunto. O agrônomo responsável pelo campo de golfe do Costão, Ricardo Aguerro, garante que a quantidade de fertilizantes será minuciosamente controlada e que não haverá perigo de contaminação porque será em quantidades mínimas, mas segundo a engenheira química Cristina Nunes, o monitoramento de áreas impactadas é um procedimento técnico que é efetuado após uma análise de risco, o que não foi feito pela FATMA, segundo ela. “Para liberar uma licença ambiental é necessário fazer uma simulação matemática de possível contaminação cruzando dados hidrogeológicos, localização do empreendimento e das fontes de captação, características como solubilidade, coeficiente de biodegradação e quantidades de agroquímicos que são então inseridas num software adequado que calcula se as fontes de abastecimento (poços da CASAN) serão atingidas pelas plumas de contaminação dos diferentes compostos químicos e, em caso afirmativo, em quanto tempo após o início do manejo do gramado”. Ela afirma que em caso de haver risco de contaminação não existe a possibilidade para emissão de licença ambiental pois o abastecimento de 130.000 pessoas estaria ameaçado. Em caso negativo, não sendo possível a contaminação, o monitoramento atuaria como precaução. “Portanto, monitoramento sem análise de risco é inócuo”, diz Cristina. Os empresários do Resort Costão do Santinho inexplicavelmente conseguiram com a FATMA, Fundação do Meio Ambiente, a licença ambiental para a realização das obras, mas nas análises do órgão não consta sequer a composição química dos fertilizantes que seriam utilizados, e nem há menção a existência do aqüífero sob a área onde se projeta o campo de golfe. A mesma área é a única sede disponível para futuros poços da CASAN, já que as demais por onde passa o aqüífero, estão povoadas e passíveis de contaminação.(veja mapa 1) Fertilização química cresceu desordenadamente A fertilização à base de nitratos começou no século XIX na Europa, quando toneladas de salitre natural do deserto de Atacama, no Chile, foram exportadas para o continente Europeu, que apresentava baixa produtividade depois de anos de cultivos. Os adubos orgânicos, ricos em nitratos, sempre foram utilizados e a troca dos bois e do arado pelos tratores e outros equipamentos agrícolas foram um dos motivos da carência de nitratos de fontes naturais nos solos. A descoberta dos fertilizantes químicos à base de nitratos, fosfatos e potássio intensificou as monoculturas e a aceleração do processo tecnológico na agricultura cresceu desordenadamente, somando-se ao aumento de nitratos dos dejetos humanos em locais sem tratamento de esgoto. É o caso do Aqüífero de Ingleses. “Como não há tratamento de esgoto na área onde está o Aqüífero de Ingleses, toda vez que chove intensamente as fossas vazam e contaminam a água com o nitrato natural da urina e das fezes humanas, seria necessário um tratamento de esgoto na área para impedir esses vazamentos eventuais, que já aumentam os níveis de coliformes e o nitrato na água influenciando em sua qualidade e composição”, diz a geógrafa Eliane Westarb, que defendeu tese de mestrado sobre o Sistema Aqüífero Sedimentar Freático Ingleses. “Quando defendi a tese e durante toda a elaboração minha preocupação era com a contaminação via expansão e ocupação, o que certamente aumenta os problemas numa região de terreno arenoso sem tratamento de esgoto, mas quando fiquei sabendo do empreendimento em cima da única área preservada de ocupação, levei um susto, vi que tudo poderia ser bem pior do que o já existente e previsto.” A preocupação da geógrafa é compreensível, porque para chegar ao campo de golfe via resort, está planejada a construção de um teleférico por cima das dunas, área de preservação ambiental que cabe ao IBAMA monitorar e que em tese não poderia ser explorada. (veja mapa 2) A salada rica em nitratos O uso excessivo de fertilizantes associados à irrigação freqüente faz com que ocorra o acúmulo de nitrato (NO3) no tecido das plantas. O nitrato ingerido via alimentos tratados à base de fertilizantes, passa à corrente sangüínea quando se transforma em nitritos formadores de nitrosaminas, substâncias comprovadamente carcinogênicas, especialmente danosas para o estômago e uma das causas apontadas de câncer gástrico pela IARC, Agência Internacional de Pesquisa sobre o Câncer. O aumento dos nitratos nas plantas por adubos nitrogenados já está comprovado no Brasil. Segundo pesquisa realizada pelo Instituto Agronômico do Paraná –IAPAR ( MIYAZAWA et.al.;2001) os alimentos cultivados no sistema orgânico apresentam concentração de nitrato menor do que 1.000mg/kg, enquanto os de cultivo hidropônico, ricos em fertilizantes à base de nitratos, apresentam um teor entre 6.000 e 12.000 mg/kg. O teor de nitratos no cultivo convencional atingiria, segundo a pesquisa, uma média entre os orgânicos e os hidropônicos. Contaminação por nitratos na água A contaminação por nitratos na água se dá rapidamente assim que ele entra em contato com a matéria orgânica do solo. O nitrato tem carga negativa e o solo também tem carga eletromagnética negativa. Quando o nitrato atinge o solo e entra em contato com a água, que tem uma molécula polar positiva, ele é atraído pela água, sofrendo então um processo de lixiviação que leva o agente químico automaticamente para as águas profundas. Segundo o Dr Marco Zambrano, gastrenterologista,“ há pesquisas que atestam sobre incidência maior de câncer gástrico a partir de água de poços com alta concentração de nitratos, o que foi verificado no Chile mas, em termos científicos, não se pode dizer que a contaminação via fertilizantes à base de nitratos no campo de golfe do Costão do Santinho vai causar câncer gástrico, porque é uma doença de múltiplas causas”. Ao ser questionado se beberia água proveniente de um aqüífero sob um campo tratado com fertilizantes, respondeu categórico: “Em tese não”. Algumas questões Nitratos provenientes de fertilizações em campos de golfe penetram no solo e chegam á água? Sim, há pesquisas que comprovam. Nitratos provenientes de alimentos embutidos e enlatados fazem mal, causam câncer? Sim, há pesquisas comprovando. Nitratos naturais do solo chileno aumentam os índices de câncer gástrico no país? Sim, já foi comprovado. Fertilizantes à base de nitratos em quantidades que são de 4 a 7 vezes mais altas do que os já considerados elevados níveis encontrados nos cultivos de hortaliças, sobre um aqüífero de terreno arenoso que abastece 130 mil pessoas pode fazer mal? Não se sabe, não há pesquisas que comprovem. Será que o campo de golfe do Santinho vai, na prática, comprovar algo? O que será?

Nenhum comentário:

Postar um comentário