sábado, 15 de maio de 2010

Amor, ervas e rock and roll

Cláudia Rodrigues *

Eles são jovens guarani. Há 500 anos as famílias deles fogem dos brancos, se embretam em matas, negociam, ganham concessão de terras, se relacionam com as cidades... Os jovens já não têm o que caçar e pescar; assistem televisão, sabem o que é um forró, mas não abrem mão da vida de índio na aldeia, da convivência familiar na volta do fogo, das rezas, cantos e danças.

O sexo para o povo Guarani é vinculado ao amor por outra pessoa. As drogas são chás que curam, fazem pensar e sentir melhor o corpo e a doença que se instalou nele. O rock and roll é todo dia. No final da tarde eles acendem fogueiras nas casas e se reúnem. Na casa de reza, onde morava a anciã da aldeia de Tekoa Porã, Keretxu Miri, o fogo ficava aceso durante o dia inteiro. É comum que as pessoas – crianças, jovens, adultos e maduros-- se juntem ao longo dia e no começo da noite na casa de reza. O bem mais importante para os guarani de 8 a 80 anos é a família. Na estreita convivência familiar eles aprendem a amar, perdoar e somar antes de odiar, julgar ou separar. Ao contrário dos botocudos e outros povos indígenas conhecidos pela agressividade, o povo Guarani se orgulha de nunca ter se embretado em uma guerra ou batalha.

É isso aí gente. Esses garotos e garotas sonham com um mundo melhor e podem fazer muito pela paz, porque de paz eles entendem tudo. Por mais miséria ou riqueza que tenha inundado o planeta nos últimos cinco séculos; eles continuam achando e praticando a vida sem guerra, cultivando o amor à natureza e às pessoas acima de todas as coisas.

Tão pacifistas, que na loucura em que estamos mergulhados, podem nos parecer ingênuos, mas esses jovens Guarani são mesmo é pós-modernos. Uma pós-modernidade que está surgindo como única opção no caos da violência urbana, militar, familiar...

Em volta do fogo

Karai Tataendy, o Nelson, de 16 anos, era um dos frequentadores da casa de reza em que vivia sua avó, Keretxu Miri, hoje falecida. “Eu gosto de ir para a casa de reza à noite. Nós cantamos e rezamos os ensinamentos dos nossos antepassados e ficamos olhando o fogo e conversamos também, escutamos os conselhos do cacique”, diz Tataendy, que de contato com drogas só experimentou a cerveja gelada. “Geladinha eu tomei uma vez e gostei, mas não gosto de beber. Nós aprendemos que o corpo e a cabeça precisam estar limpos das coisas que fazem mal”, afirma. Ele acredita que as drogas, os roubos e a violência andam juntos e não gosta de nenhum dos três.

Paz e amor, bicho

Nhamandu, o Sílvio, de 19 anos, que já morou na cidade de Itaperuna, no Rio de Janeiro, hoje está de volta à aldeia. Ele tem uma casa de sapê, mora sozinho, quer estudar informática, mas gosta mesmo é de música. Fã do Queen, Brian Adams, Guns and Roses e música romântica, ele gosta de tocar o violão de cinco cordas da aldeia e também violino, que está aprendendo. “Sei mais a música Guarani e algumas do folclore, como essa aqui do curupira”, fala, mostrando no violão, que é de cinco cordas mesmo. “Os guarani tocam assim com cinco cordas, é afinado assim, não é porque está faltando”, explica. Depois conta que o violão e o violino já existiam antes dos portugueses, que isso é coisa muito antiga de seu povo, como são as taquaras, que eles batem no chão enquanto cantam e dançam. As letras das músicas falam do amor à natureza e por Nhanderu, Deus, que criou a terra para os animais e as plantas. Falam também das pessoas encantadas, pessoas que eram muito sábias e boas e morreram, ficaram encantadas. “Não é qualquer pessoa que fica encantada, só as pessoas muito boas é que encantam depois que morrem”. Talvez seja por isso, por vontade de virar um encantado que os Guarani se recusam a praticar qualquer violência.

Eu já morei dois anos na cidade, eu sei o que é morar na cidade e por mais coisas boas que tenha na cidade, existe muita violência e muito dinheiro. É difícil viver na cidade com pouco dinheiro e as pessoas acabam brigando por dinheiro e aí até matam, fazem muita violência, tudo por dinheiro. Eu não preciso de muito dinheiro, um pouco só, para comprar algumas coisas”, conta Nhamandu, que pretende estudar informática mas continuar morando na aldeia.

Festa para a primeira menstruação

Ara Poti Miri, a Fabiana, de 14 anos, adora dançar. “Eu gosto muito de dançar o tcham e também as nossas danças e adoro o grupo Raça Negra, conta Ara Poti que, além de estudar, ajuda na lida da casa e no cuidado com as crianças. Faz tudo ligadíssima no rádio, sempre girando o dial a procura de suas músicas favoritas. O que não gosta mesmo, de jeito nenhum, é de banana de supermercado. “As bananas de supermercado não têm gosto de nada. Eu prefiro as comidas que nós plantamos aqui, principalmente a banana, que é muito mais doce, acrescenta Poti que faz segredo dos namoros e ainda está comemorando a chegada da primeira menstruação, com seus cabelos recém- cortados. “Quando acontece isso (menstruação) para as meninas, a gente faz uma festa na aldeia, a minha avó corta o cabelo da menina, as mulheres fazem trancinhas com o cabelo cortado e os homens amarram as tranças nas pernas deles e dançam”, conta.

E na festa de Poti teve tudo o que tem em festa Guarani: muita batata doce, banana, milho, chimarrão, uma herança dos tempos do sul, e é claro, muita dança, reza e cantos. O ritual tem um papel educativo e é uma forma de agradecer a Deus por estar colocando uma mulher capaz de fecundar, de vencer a luta pela sobrevivência, sendo capaz de se tornar eterna através das vidas que põe no mundo.

Viagens entre aldeias

Keretxu Rata Miri, 15 anos, que tem o nome da avó e é prima de Nhamandu, também não gosta da cidade, mas adora locais de natureza exuberante. “Eu estive na Serra do Caparaó no mês passado e achei tudo muito lindo lá. Em um lugar assim eu moraria, mas sair da aldeia para ir para a cidade não”, diz a garota. Wanda, como é chamada em português, além de gostar de natureza exuberante, é professora de Guarani e está ensinando as crianças a escrever a própria língua. Ela não tem tido muito tempo para namorar. Passa o dia na aldeia cuidando de um bebê, seu irmão mais novo, estudando e ensinando as crianças. Mas faz planos para o futuro no amor. “Eu vou namorar e casar com um homem trabalhador e que não seja ciumento, porque o ciúme faz mal, diz. Como os outros jovens da aldeia, Keretxu Rata Miri viaja muito e visita outras aldeias indígenas. “Eu gostei muito da aldeia Guarani de Ubatuba. Lá tem cachoeira e ainda dá para pescar e caçar, mas vou para onde minha família vai, pois acho a família muito importante, conta Wanda que gosta de música sertaneja, de axé e de novela.

“Eu gosto de escutar axé e sertaneja, mas dançar eu só danço a música Guarani e as novelas eu vejo de vez em quando, mas não quero ter nada daquilo que aparece nas novelas, como casa, carro, essas coisas. Acho bonito de olhar, mas para mim o importante é a natureza e na cidade não tem natureza, diz.

Ficou? Casou!

Papa Miri, o Ataíde Vidal, de 15 anos, está começando a pensar em namoro: “Eu ando pensando em namorar, já dei uns passeios com uma pessoa, toquei violino para ela, mas estou com medo do compromisso”, explica. E ele tem razão pois namoro de índio é coisa séria e o cacique fica de olho neles. “Eu oriento como fui orientado. O namoro do índio não é igual ao do branco, que um dia está com alguém, em outro já não está mais. Primeiro tem que conversar bastante, fazer passeios e acordo de que não vai brigar, ficar com ciúme, fazer mal. Só depois é que pode tocar, mas aí já é para pensar em construir a casa e marcar a data do casamento”, frisa o cacique Tupã Kwarai.

E enquanto pensa se encara o namoro ou não, Papa Miri vai curtindo a vida regada ao rock do RPM, ao forró e à música sertaneja. “Acho legal o forró, ver as pessoas dançando, mas eu não danço, só fico olhando, fala Papa Miri, que sonha em estudar mais, trabalhar para aldeia e constituir uma família unida.

Fala guri

Para Kwarai Mimbi, o Waldecir Benite, o amor sempre falou mais alto. Tanto, que o moçoilo já está no terceiro casamento com apenas 17 anos de idade. “Já fui casado duas vezes, mas não deu certo porque era com mulher mais velha. Agora estou casado de novo, ela é só um ano mais velha, e vou ficar para o resto da vida, garante. Kwarai Mimbi trabalha nas plantações, estuda a língua Guarani escrita e tem como meta aprender a falar japonês, inglês e espanhol. “Eu gosto muito desse negócio de línguas, de entender como as as pessoas se comunicam, reparar se é parecido ou muito diferente”, conta Mimbi, que tem uma posição formada sobre os problemas do Brasil. “As autoridades só falam, falam e não resolvem nada. O que precisa é fazer e não ficar falando”, desabafa. Kwarai acha que os jovens que vivem na cidade se drogam porque não são orientados e não entendem a droga, como entendem os jovens Guarani. “Eles acham que é bom ficar na droga, ficar sonhando, mas não percebem que com a droga só tem cabeça e não tem coração e com cabeça sem coração a pessoa não sente e sem sentir o ser humano fica desprotegido por dentro e é dentro que importa”, afirma.

Andando na contracultura

Mas nem todo jovem Guarani consegue achar que a vida na aldeia está completa. É o caso de Awa Mirim, de 15 anos, o Márcio Mendonça, que deseja fazer uma grande mistura entre a aldeia e a vida urbana.“Eu estudo português na escola normal, mas parei de estudar guarani. Prefiro morar na aldeia, mas gosto de comprar coisas na cidade. A cidade tem muita coisa para comprar, acho a Tiazinha bonita e gostaria de namorar uma branca para experimentar, não para casar, mas se eu me apaixonasse por uma branca eu desobedeceria o cacique”, dispara contando que quer ser jogador de futebol e professor de matemática. Para Awa Mirim as drogas estragam a vida e a família é um bem inafiançável. “Eu sempre quero viver com a minha família em paz, pois é a família que nos dá apoio”, encerra.

Palavra do cacique

Nós damos conselho, não é briga, é conversa, mas precisa ter o respeito pelas leis. O respeito é muito importante”, frisa Tupã Kwarai, o cacique da aldeia de Tekoa Porã. Ele explica que o respeito pela conversa é muito importante para a criança, pois ela não sabe ler e precisa de orientação. “Depois, quando estão mais velhos, mesmo os que já sabem ler, continua o ensinamento pela conversa porque a nossa inteligência vem da cabeça, do sentimento e não da escrita.”.

A inteligência, como fala o cacique, são os costumes que necessitam ser mantidos, pois foi com eles que a tribo sobreviveu. “se um rapaz vem tomar chimarrão comigo e ele gosta da minha filha, eu não vou falar se ele pode namorar. Eu vou falar que ele tem que respeitar. Não é chegar, agarrar, apertar, beija; é tomar chimarrão conversando, passear, fazer os acordos”, declara.

A masculinidade nos homens e a feminilidade nas mulheres é sempre incentivada nos rituais e nos conselhos. “Assim, já perto dos seis anos, as meninas devem brincar com meninas e meninos com meninos. Menino não deve andar assim muito com a irmãzinha, com brincadeiras de menina pois fica fácil de acontecer os pensamentos de homem querer viver como mulher e mulher querer ser como homem. Isso não é bom sinal para a aldeia e também não é bom sinal mulher ter filhos gêmeos”, fala Tupã Kwarai.

A homossexualidade, rara entre eles, não é bem vista pelo motivo óbvio: é, a princípio, contra a procriação e filhos gêmeos, outra exceção à regra, podem não sobreviver e isso será triste para a aldeia. A honra e a desonra são levadas a sério, mas o perdão está sempre presente. “Não há notícia de índio bandido porque nós não acreditamos na violência, não praticamos violência e ensinamos o que é bom para as pessoas”, diz o cacique, que frisa bem. “Nós só damos o conselho e a maioria segue ou então tem castigo de trabalhar mais e por último precisa ir embora da aldeia, mas pode voltar, pode se arrepender e respeitar os conselhos”.

E o cacique não é temido na aldeia e está sempre com as crianças ou na casa de reza, nas plantações. Participa ativamente de tudo o que se passa na aldeia e todos nutrem um sentimento de respeito profundo por ele.

Matéria originalmente publicada na Revista Transamérica

3 comentários:

  1. Bela matéria dona Cláudia.
    Isso da livro, heim???
    Beijos,
    Lau

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  2. que bom ler isso ao começar o dia. Fico mais em paz.
    Que bom que ainda tem pessoas e povos iluminados!
    bjs
    Anne

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  3. Cláudia,
    Texto excelente. Fundamental para entendermos um pouco da falada questão indígena sem os preconceitos, preceitos, receitas antropológicas do século XX.
    Vc consegue perceber o que significa ser índio nos nossos tempos. Tudo pela ótica do índio. Parabéns. Seu texto, sem exageros é melhor e mais profundo que muita tese de mestrado e doutorado que anda por aí.
    José Juvenal Gomes

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