Desinformada, negra e pobre. Em 1995, em um momento de desespero, ela simplesmente deixou o quinto filho, um recém-nascido, em uma rua de São José do Rio Preto, SP, enrolado numa manta. Não sabia como fazer para sustentar mais um. Equacionar a questão de precisar trabalhar com cuidar e acalentar um recém-nascido em suas longas demandas era uma impossibilidade real para aquela mulher abandonada pelo marido e com ganho mensal menor do que um salário mínimo. Não havia uma campanha pública forte – e ainda não há – para encaminhá-la a um processo de doação para adoção. As campanhas são mais direcionadas para quem deseja adotar.
Ela havia escondido a gravidez da patroa e cuidar do bebê significava não alimentar os demais, ela temia ser demitida. Em frente ao delegado, criminalizada, aos prantos, era a imagem da dor. De suas orelhas fluía um sangue contínuo que manchava todo seu rosto e o trapo que vestia. Ela havia literalmente arrancado os brincos de pavor.
Muitas pessoas julgaram covardemente que o seu sentimento era de culpa pelo crime, mas provavelmente sua maior dor continuava sendo a da causa do ato criminoso: presa, ela não poderia sustentar os outros quatro filhos.
Os sentimentos daquela senhora diante da própria realidade não cabem no argumento simplista de que a mulher é dona do próprio corpo e faz com ele ou com quem vem dele o que quiser. Ali estava uma pessoa inserida numa situação social, econômica, política e ambiental do mais completo abandono reproduzindo a escalada de múltiplos abandonos históricos que viveu ao longo da vida. Uma pessoa que por acaso nasceu mulher, o corpo biológico que gesta.
De lá para cá a cena de abandonos de recém-nascidos no Brasil se multiplicou, está virando uma epidemia, mas ao contrário do que se pensa não é coisa do mundo moderno uma mulher não querer o filho no próprio ventre, abandonar filhos já nascidos, ver-se sem condições de assumir a maternidade. Os motivos são singulares, mas em todas as classes econômicas rejeitar um filho no ventre é uma realidade atávica. Existe e. Do ponto de vista da saúde pública essa questão precisa ser resolvida ou ao menos tratada sem música religiosa de fundo. Deve ser vista tal como se apresenta na infelicidade de nossa realidade econômica e social.
Sócrates já recomendava às parteiras que ajudassem as mulheres que não desejavam levar a gravidez adiante. Aristóteles também recomendava o aborto, especialmente para mulheres mais velhas, a fim de prevenir malformações.
O próprio cristianismo só tomou uma posição drástica contra o aborto em 1869. Antes disso São Tomás de Aquino garantia leis religiosas menos arbitrárias, baseadas nas necessidades das mulheres em limitar o número de filhos.
Práticas abortivas, de simpatias a beberagens, passando por procedimentos violentos, sempre existiram e sempre causaram infecções e mortes de mulheres que não se viam em condições psicológicas ou materiais de encarar a maternidade, a maior de todas as responsabilidades, o vínculo eterno.
Por infinitas questões, que nem de longe se encerram unicamente na falta de recursos materiais, algumas mulheres não querem filhos, sentem pavor da ideia de gestar, parir, criar e conviver com crianças. Pode não ser o seu caso. Definitivamente não é o meu, nesse momento, mas é preciso compreender a infinitude dos conteúdos internos e externos das pessoas. Não ser o nosso caso particular não reduz os números alarmantes, tanto de morte de mulheres quanto do abandono de crianças.
Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), 20 milhões de abortos são feitos anualmente no mundo de forma ilegal, em péssimas condições. No Brasil 250 mil mulheres dão entrada anualmente em hospitais públicos após complicações de abortos ilegais caseiros ou em clínicas particulares mal equipadas.
É fato ainda que muitas mulheres acabam tendo nos braços um filho não querido. Nas classes média e alta esse abandono é mascarado, aparece na falta de convivência, aulas excessivas disso e daquilo, mil médicos e tratamentos, ocupações utilitárias infantis a perder de vista para justificar o pavor do vínculo, do compromisso emocional, do ter que estar junto. Estamos longe de praticar a maternidade e a não-maternidade consciente.
Quando o abandono soma-se às carências materiais, temos aí mais um número escandaloso: 2 milhões de crianças vivem permanentemente nas ruas do Brasil. Essa estatística não inclui as que vão e voltam para casa levando dinheiro e tomando tabefes.
O que houve historicamente foi um abandono da situação, uma falta de compaixão pública e social para um problema que sempre existiu e que provavelmente sempre existirá: rejeição e abandono de crianças. Há um claro investimento nisso, produzimos mais crianças e mais desamparo a elas após o nascimento. Com base em preceitos religiosos alavancamos como nobreza amorosa os nascimentos indesejados e nos lixamos para o que vai acontecer depois.
Desde o século XVII até meados do século XX as crianças rejeitadas podiam ser acolhidas pela
Roda dos Expostos.
Havia uma solução para as mulheres que não queriam abortar, para as que decidiam dar curso à vida, irresponsabilizando-se pela criação.
Hoje o que temos? Repressão às pobres, desvalidas, que não têm a quem recorrer, e proteção hipócrita às ricas. O Brasil está coberto de clínicas abortivas privadas, que dão lucro, oferecem serviços de luxo, seguro e não pagam impostos. Pagando bem também podemos ter o pré-aborto em nome do filho biológico almejado, dispensando os demais nos tubos de ensaio.
O Brasil tem um número estimado de
8.ooo embriões congelados, filhos de casais que sonharam ter filhos por inseminação artificial e não sabem o que fazer com os que sobraram.
Criou-se durante a Segunda Guerra, em nome dos filhos da pátria, uma campanha mundial contra o abandono dos filhos em fase embrionária. Somente 20 anos depois na Europa e nos EUA, nos anos 1960, o direito à descriminalização e legalização do aborto retornou como pauta. Hoje é legalizado ou descriminalizado para 66% das mulheres do mundo em cerca de 100 países.
Um aborto sempre será um procedimento delicado do ponto de vista humano e psicológico. O direito à descriminalização ou legalização do aborto não pode ser confundido com um método para não ter filhos, mas como uma última opção para não colocar no mundo crianças indesejadas, que ficarão nas ruas, em abrigos ou serão descuidadas, repudiadas em suas próprias casas.
Nenhuma mulher deseja abortar antes de se ver na situação de estar grávida e não querer um filho, não querer gestar.
Nenhuma mulher rica ou pobre, podendo pagar uma clínica particular em um país onde é proibido ou tendo acesso ao aborto num país em que ele é legalizado, sonha com o agendamento de um novo aborto, após passar uma vez por essa experiência traumática.
A maternidade é tão complexa na vida das mulheres que muitas das que sonharam imensamente ter filhos, mantêm embriões congelados depois de terem conseguido um único filho ou um par de crianças. Elas também não sabem o que fazer com os que deixaram de querer e vivem embrionariamente em tubos de ensaio por 8 anos antes de transformar-se em lixo genético.
Curiosamente essas brasileiras podem pré-abortar, reservar um tubo de ensaio para guardar os embriões que nunca se transformarão em filhos, mas que potencialmente até poderiam vir a ser úteis para a cura de doenças. Temos aí um dilema existencial não previsto, mas fato em nossa realidade.
As que dependem do sistema público ficam sem solução para seus dilemas existenciais apenas porque não podem pagar uma clínica privada segura para abortar.
Não dá para banalizar o aborto. Obviamente não é a única medida para tratar a questão, seria a última, até porque muitas mulheres acabam levando a gestação adiante e se vêem depois na impossibilidade real de sustentar e cuidar da criança.
Recém-criada pelo Ministério da Saúde, a
Rede Cegonha dá um passo importante ao abrir cadastro para as gestantes que desejam levar a gestação adiante programando um atendimento transparente e aberto de pré-natal e acompanhamento do desenvolvimento do bebê nos primeiros anos de vida. Essa medida é preventiva para abandonos após o nascimento e espera-se que a mulher que deseja doar para adoção também seja bem recebida e encaminhada sem falsos moralismos, sem condenação social. Espera-se que o desejo de não criar seja respeitado por todos a fim de evitar abandonos.
Ainda falta um passo em termos de políticas públicas: descriminalizar a decisão de abandono na fase embrionária, sem confundir uma coisa com a outra. Existe o desejo de gestar e criar, gestar e doar, criar sem gestar e de não gestar e não criar.
A verdade nua e crua é que temos crianças sobrando no meio das ruas, comendo restos, sem estudar, sem usufruir de qualquer um dos direitos “garantidos” por lei. Temos crianças sobrando nos orfanatos, recolhidas aos montes por maus tratos, disponíveis para adoção.
Valorizar a vida não pode ser dar as costas para as mulheres que morrem por abortos mal feitos e acabam deixando meia dúzia de filhos vivos na rua. É preciso valorizar as crianças que já temos compreendendo e arranjando soluções para dilemas humanos que, ainda que não pertençam ao nosso universo particular, não nos dão o direito de simplesmente julgar, condenar.
As políticas públicas devem acompanhar os processos humanos, as necessidades humanas atuais, por piores que nos pareçam, por mais distantes que sejam de nossa realidadezinha de filhos muito amados e bem cuidados. É uma questão de direito de igualdade entre as mulheres mais do que direito de fazer o que queremos com nossos corpos.
A urgência é tratar as crianças que já estão entre nós, bem vivas, ali mesmo na esquina ou nos abrigos a aguardar, muitas vezes até a maioridade, a adoção que nunca chegará. O que é mesmo que estamos a fazer por elas, essas nossas crianças que nasceram sob a forma da lei?
A urgência não pode ser um investimento contínuo na produção de nascimentos em nome de um amor à vida do filho daquela que ninguém vai criar, que nenhuma igreja vai tomar conta. Qual o objetivo afinal de criminalizar a mulher que quer se desfazer dos filhos no útero? Chega a ser uma perversidade essa hipocrisia do direito de nascer, como se um ser humano fosse uma planta que se desenvolve sozinha.
Para alongarmos o olhar, uma frase de Fernando Pessoa, do Livro do Desassossego, anotações de 10/12/1932.
“Cada um de nós é vários, é muitos, é uma prolixidade de si mesmos. Por isso aquele que despreza o ambiente não é o mesmo que dele se alegra ou padece. Na vasta colônia do nosso ser há gente de muitas espécies, pensando e sentindo diferentemente.”
E isso ai
ResponderExcluirDescriminalizar aborto e, antes de qualquer coisa, uma questao do principio de que TODOS sao iguais. A rica pega um aviao e aborta em Paris, Amsterdam ou NY sem se esconder da policia (o agendamento e feito daqui, por telefone ou correio eletronico, e o pagamento com cartao de credito) e ainda aproveita e faz umas comprinhas, enquanto a pobre....
Sou homen, com altissimo nivel educacional, tenho otima situacao economica e nao tenho nem quero filhos, pois acho que preparar uma pessoa para ser bem ajustada neste mundo demanda um tempo que nao possuo. Todos devem (ou deveriam) se fazer, antes de gerar um feto e em seguida um filho, a seguinte pergunta: tenho condicoes economicas ou emocionais para entrar nesta empreitada com sucesso?
Finalmente, o direito a corrigir um erro na eventualidade de uma gestacao indesejada deve ser dado a TODA mulher. Do que os defensores da criminanlizacao do aborto nao querem sequer ouvir falar e de planejamento familiar.
Fico por aqui
Abraco a todos e beijos a todas (especialmente as bonitas) pois ja disse o poeta ``As feias que me perdoem, mas beleza e fundamental``