quinta-feira, 9 de maio de 2013

As leituras do Sr. Ducterlívio Silva


Cláudia Rodrigues

Certa tarde de um domingo de inverno ensolarado, lá pelos anos 1970, surpreendi meu avô Ducterlívio Silva, o mágico, piloto de aviões, violonista, poeta e pintor de quadros bucólicos, lendo com uma lupa.
Vô, tu não tá enxergando?
Tô, mihita, se não estivesse como poderia ler?
Ué vô, mas se tu tá usando lupa é porque não enxerga direito.
Ah, mas ainda bem que assim enxergo bem, seria o meu fim não enxergar as letras nem de lupa!
Logo depois, para me distrair na tarde enfadonha, mostrou como a lupa faz um papel queimar, separando uma nota que portava no bolso.
Vô, tu tá queimando dinheiro!
Dinheiro dura para sempre, pior é queimar a vida, os anos que a gente queima não voltam mais.
Ele lia qualquer coisa da maçonaria, mostrou-me uns gráficos, não tenho ideia do que seja, acho que menos ainda do que tive na época, mas tratava-se de algum tipo de ocultismo, que era de alguma forma o papel dele na maçonaria.

Guardo comigo alguns dos livros que ele deixou, um desenho do Tiradentes, uma faca de churrasco, um quadrinho que retrata muito mal uma paisagem do rio Nilo e a pintura de uma coruja triste. Pintar animais era seu maior talento, especialmente cavalos e pássaros ele pintava muito bem. E as lembranças, muitas lembranças. Ensinou-me a comer lima da Pérsia didaticamente, explicando que haveria um certo amargor ao final e que a grande sacada era sentir a parte amarga da fruta, ali estava o remédio. Divertia-se com gravações, adorava gravar nossas conversas espontâneas, nossas gargalhadas infantis e ria como criança ao ouvi-las varias vezes, indiferente às represálias da sua amada esposa, minha avó, que insistia em dizer que ele estava surdo e caduco. Ele ria disso, de verdade, sem mágoa, era maior do que qualquer juízo que pudessem fazer dele!

Durante as férias que passava em sua casa, uma das melhores diversões era ficar em dia com a banca de revistas. Todos os gibis, todos, cada dia que chegava um gibi novo, minha prima Consuelo e eu ganhávamos o gibi da hora. Só hoje percebo que nos encantar com gibis era uma forma de nos deixar um pouco caladas para ele tomar conta de seus afazeres, caso contrário ele teria que passar o dia inteiro fazendo mágicas para nós. Não que ele não fizesse, bastava pedir e ele ia lá, sacava a maleta daquele escritório de mil pertences e começava o espetáculo. Era sem coelho na cartola! Tirava moedas dos nossos cabelos, cartas de baralho e até ovos, fazia caneta falar, corda endurecer como se fosse um pedaço de pau, bolinhas de ping pong obedeciam suas ordens!

Na adolescência ganhamos um avô novinho em folha, ia para as tertúlias conosco e tomávamos uísque escondidas com ele. Era uma questão de proibição para menor e maioridade, como ele dizia. E tocava seu violão, aquelas milongas compridas. Não era homem de muitos carinhos, de beijações ou abraços, era desse tipo de gente que ama servindo e se divertindo junto. Não puxava dinheiro do bolso, comprava bolachas e frutas, fazia um café preto e jogava ali, nós comíamos e bebíamos para escutar mais uma história. Muitas histórias de vida, todas com vasto humor, mesmo quando eram trágicas, como a de um defunto que ele levou de uma cidade a outra fazendo um frila de táxi aéreo.

A leitura, ele dizia, é melhor do que reza porque as rezas todas vieram da leitura e melhor do que reza é a poesia, que ensina a viver sem medo de Deus e muito menos do padre. E assim foi meu avô e seu ensinamento sobre a leitura, o melhor remédio contra a depressão. Como pode mesmo morrer de tristeza uma pessoa que consegue fugir para dentro de um livro?

A leitura tem tudo que o vivente precisa. No frio, um cobertor e um livro, um café com gosto de avô e lá está a praia, o mar e uma história de amor. Nada mais existe. Uma patada de alguém que aprendemos a gostar e o livro aquele ali na estante pedindo uma colher de chá, que fique o resto para lá. Tudo pode esperar, a arrumação da casa, o compromisso aquele, tudo pode esperar mais uma frase louca do Saramago. Para o instante menos nobre da existência humana, nada como a dignidade de esquecer o feito primário envolvido pela leitura. Mas o melhor de tudo é estafar-se das providências e todo santo dia após a labuta, deitar ao lado de quem se ama, tendo a sorte ou a esperteza de ter escolhido como companheiro um amante da leitura, para ler juntos dois livros separados, antes que as leituras se encaixem safadamente esquecidas em corpos vivos ou sejam apenas solenemente deixadas de lado para dar boas graças a Morfeu.

Vô Ducterlívio, meu pedaço uruguaio, saudade sempre, até o fim dentro de mim.




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