sábado, 9 de maio de 2015

O Dia da Encrenca




Cláudia Rodrigues


Assim bem pequena eu olhava a encrenca de longe, ali pelos nove anos decidi: não quero essa encrenca para mim.
Por volta dos 16 sofria de um verdadeiro pavor da encrenca tomar conta de mim, queria estudar, trabalhar, viver sozinha, viajar pelo mundo.
Aos 22 anos, estudos concluídos, caí no mundo, segura de saber administrar a não encrencação enquanto observava e via os mais variados tipo de donas de encrencas pelos cinco continentes. Achava tudo interessante, mas não, não era para mim.



Multiplicar para depois dividir tudo? O meu tempo todo? Como trabalhar, fazer todas as coisas, todas as viagens tendo que carregar apêndices? Que coisa irracional! As outras eram as outras, eu era um ser racional e naquilo não haveria o menor sentido a não ser por apelos sociais e culturais. Eu era livre, solta no mundo, poderia ir a qualquer lugar na hora que bem entendesse, batia a porta e sobrava um eco seco, jamais seria domínio de alguém.


Aos 25 comecei a desconfiar que as encrencas poderiam não ser tão encrencas assim, sentia-me presa à liberdade que eu mesma criara. O eco seco da porta começava a me incomodar.
Foi bem nessa época que visitei, atrasada, a encrenquinha de uma colega de trabalho e fui surpreendida pelo pedido dela para que eu ficasse tomando conta por algumas horas da sua pequena encrenca de 8 meses.
Amassei um abacate, sem açúcar, conforme recomendação da dona e adorei fazer aquilo, cada colherada, as caretas, aquela coisinha me entendia e ria do nada me fazendo rir de volta.
Passeei pelo quintal e como a encrenquinha começou a sentir saudade da sua dona, tive dó, resolvi cantar e embalar. A encrenquinha dormiu e eu senti um imenso e jamais experimentado sentimento de paz.
Olhei ao redor: a casa, as plantas...A porta que fechou atrás de mim deixou um eco molhado, eu queria voltar. Voltar para onde?


Na real queria mesmo uma encrenca para mim, só uma. Eu saberia cuidar e experimentaria a sensação de ter a barriga virando uma melancia, depois colocaria para fora, assim bem forçuda e pôxa, eu iria alimentá-la com um estranho suco próprio, fabricado dentro de mim. Não, eu não poderia passar pela vida sem essa experiência, essa viagem para dentro do meu corpo também precisaria ser feita.
Para completar estava tão apaixonada, que só uma encrenca bem boa poderia fazer meu sonho do amor para sempre perdurar.

Quando dei por mim estava encrencada e tudo o que eu queria era saber mais sobre as encrencações.
Quanto mais eu lia, mais queria ler e saber sobre aquilo na parte de dentro e na parte de fora de mim.
Era mesmo uma encrenca maior do que eu podia imaginar porque fugia totalmente do racional. Eu sentia, pelas barbas de Netuno, eu sentia e sentir não era racional. Hipoteticamente até sabia, mas na prática não era mesmo como amar minha gata, muito menos a encrenca da amiga.



Gostei tanto que dois anos depois já havia encomendado a encrenca 2.
Pronto, agora era tocar a vida com duas encrencas, pararia de ler e tentar saber mais sobre o mundo das encrencas, voltaria a trabalhar na minha área de formação.
Foi quase assim, voltei mesmo a trabalhar na minha área, mas não consegui parar de estudar sobre as encrencas e acabei fazendo outra formação mais a ver com o universo das encrenquinhas e seu desenvolvimento. Dez anos assim, encrencas desmamadas suavemente, já com opinião, vida leve e solta outra vez, indo e vindo sem o eco seco da porta.

Estava tudo bem, as encrequinhas estavam crescidas, eu já trabalhava com as duas áreas, havia dado um jeito de casar as duas áreas dentro e fora de mim. Racional perfeito, acomodado de novo.
Até que perto dos 40 começou de novo um desejo profundo de encrencação. O racional gritava não! Como assim depois de ter uma encrenca de cada gênero, já crescidas, arrumar outra? Barriga, amamentação, simbiose, suave desmame em longas prestações, tudo de novo? E a explosão demográfica? A fome no mundo. Se fosse para ser, que fosse adoção então! Isso seria mais racional.
O eco da porta continuava batendo molhado e além de poder voltar, eu era livre para ir mais longe!



Não havia absolutamente razão alguma, aliás não parecia haver sentido em ter outra encrenca.
Aí a coisa endoidou de vez. Além de desenvolver uma inexplicável alergia ao preservativo, só sentia desejo no período fértil. Tipo muito, apagando a seguir qualquer fagulha de fogo. Marido trocando orelhas para entender aquilo tudo.
Como se não bastasse, produzi miomas e sonhos com um bebê que chorava na minha porta, colocado numa caixa de sapatos.
E assim bem doida, disfarçando a psicose, todas as manhãs eu fingia que ia regar o jardim, pagando de neurótica, só para ver se não havia mesmo ali no canto, debaixo do pé de hibiscus, um caixa de sapatos com um bebê dentro.
Adotei uma gatinha. Não resolveu.

Foi assim que sem querer racionalmente, arrumei a terceira encrenca. E foi tão minha que nascemos uma da outra sozinhas, sem assistência nem nada. Já havíamos esperado tanto por esse encontro irracional, que nada do mundo racional poderia intervir ou atrapalhar.
Tudo foi apenas sentido e o sentido disso, oras, que não faça sentido nem caiba em qualquer manual.









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