segunda-feira, 20 de julho de 2015

Manchas senis sem base em evidências

Cláudia Rodrigues  

Um dia elas aparecem
Dizem os estudiosos de pele e seus seguidores que podem ser adiadas por muitos anos ou até mesmo prevenidas com protetor solar, desde que se evite sair ao sol entre 10h e 15h e se faça uso de chapéus, óculos, lenços, luvas para dirigir. Pela vida inteira.
No alto da testa, ao lado esquerdo, cultivo uma. Não fui capaz de evitá-la.
Quando será que ela se sentiu a vontade para começar a brotar, quando teve sua primeira esperança de viver em mim?
Nos banhos de mar, rio e piscina da minha infância, quando sequer existia protetor solar e a graça era contar quantas vezes descascávamos para ganhar nova pele a cada verão? Quem contava com a pele mais forte, a que ficava morena mais rapidamente, na fantasia da época, era pessoa mais forte, mais resistente ao sol. Produção menor ou maior de melanina era papo para os fracos.
Ou terá sido nas caminhadas diárias até o alto da pedra Buda na ilha de Ko Thao, quando eu passava as manhãs escolhendo o peixe menos colorido para fisgar?
Teria essa mancha e outras que começam a surgir, um momento ímpar lá atrás em que se aproveitaram do meu prazer para resolverem viver em mim?
O sol quente e seco naquela cavalgada para conhecer as pirâmides menos famosas do  Egito?
Aqueles 40 quilômetros a pé, sol a pino, entre o Norte e o Sul de Israel?
As infinitas vezes em que apenas deitei na proa de um barco, na areia quente de uma praia qualquer e senti o sol nu e cru na pele?
As muitas horas em que perdi a noção do tempo nas várias hortas das muitas casas em que vivi?
As vezes em que cavalguei horas e horas por dias a fio?
As subidas ao Morro do Lampião?
Nada me convence que essas manchas sejam malvadas ou se revoltarão contra mim. Dei vida a elas, deverão ser gratas, essas bobinhas.

Mas agora, outra fase, cada vez a coisa que vem de fora fica pior.
Aos 51 anos estou mais vulnerável aos argumentos sob os efeitos nocivos do sol. Procuro não ler sobre as maravilhas do protetor solar, a pessoa tem direito a praticar ignorância em causa própria e particular se isso traz um inefável prazer.
No momento não vejo a hora da chuva de mais de uma semana parar, não por um único dia, mas por vários, para que eu possa fazer muitas coisas ao sol.
O raciocínio é bem simplório, sem base em evidências: já cheguei até aqui me divertindo tanto com o sol, já tem os dias de chuva, os dias nublados, os infindáveis dias de inverno com sol morno. Que venha o sol, vou continuar na paixão com ele.

E nem é verdade que na década de 1980 já não se sabia dos efeitos nocivos do excesso de sol. Eu mesma já falava sobre isso. Lembro bem de um diálogo com minha querida tia Blanca Fígoli.
Eu ia, ela voltava da praia, bem bronzeada, no alto dos seus sessenta e muitos anos, vinha trazendo uns peixes que havia pescado. Paramos no caminho para trocar umas palavras.
Mijita, que linda estás!
Ola tia, que bronzeada, mas olha toma cuidado porque sol demais faz mal para a pele! (sim, eu mesma disse isso)
Ela ficou triste, espantada!
Si, verdad? No me digas eso, pensé que me dejava la piel mas lisa, asi lo siento, que lastima, mijita.
Pena que ela já não esteja viva, me arrependi tanto de ter dado esse terrível aviso, me gusta el sol, asi lo siento.
Que lastima os avisos que o sol faz mal. Não quero saber, fico sem ele por esses dias de chuva, não mais do que nos dias de chuva e nos dias que não posso estar lá fora por outras forças.
Tia Blanca morreu aos 92 anos de idade, sempre com o sol na cabeça. Sempre lendo, escrevendo, recitando poemas. Talvez ela tivesse muitas manchas na pele, certamente estava bem enrugada, não lembro bem, só me vem sua voz, seu riso, suas teimosias engraçadas, seus olhinhos pequenos, redondos e ligeiros, suas pernas cambotas e fortes, mas é deve ter morrido com muitas manchas na pele. Nem quero chegar a tanto, mas será com o sol na cabeça e as manchas na pele, por supuesto.




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