Por Cláudia Rodrigues
Por mais delicado que seja o parto ele é um ato de expulsão. É quase injusto usar a palavra rejeição até porque o bebê necessita sair e o momento clímax da separação ocorre em sintonia perfeita entre os dois corpos; o que sai porque necessita sair para continuar vivendo e o que permite a passagem para deixar viver e continuar vivendo, mas é necessário acessar sentimentos de rejeição adormecidos na hora da expulsão. Esse não é um trabalho só de dois corpos, mas de duas almas, sendo que a parte adulta possui a dolorosa consciência por seu papel nessa separação. Demorado ou quiabo, prazeroso ou conflituoso, o parto, além de ser uma celebração da vida que venceu na luta pela sobrevivência é a morte do processo simbiótico total entre mãe e o filhote.
Quando se deseja um filho, ao expulsá-lo do ventre a mulher cai num vazio imediato tanto quanto o bebê e imediatamente necessita recuperar o grude com ele, reparar a rejeição. Visceralmente a única forma de reparação é por meio dos seios. O bebê perde a alimentação via cordão umbilical e ganha dois peitos com colostro, o leite inicial, o suco da matriz que é o mais perfeito dos alentos. A mulher perde o ser que habitava seu corpo como se não fosse outro ser, mas parte dela, para ganhar um filhote que só fica visceralmente feliz grudado nela aqui pelo lado de fora.
A euforia após o nascimento é uma característica do ato de parir. Para a maioria e principalmente em partos não traumáticos, assim que o bebê nasce o cérebro acessa que a vida venceu a morte. Não é um ritual de celebração cultural, mas antropológico, fisiológico e extremamente espontâneo. Passados os momentos iniciais de encantamento a mulher entra numa corrente de euforia, pode até mesmo perder o sono e a fome. Essa euforia dirigida ao bebê permite um atendimento seguro, a mulher simplesmente se vê capaz de cuidar do filhote que ela enxerga como um ser forte e destemido que conseguiu salvar-se na luta pela sobrevivência. Ela o coloca espontaneamente no peito, acha tudo normal e só vai sentir um certo cansaço natural da empreita do novo corpo depois de uns 15 dias.
Em casos de maior sensibilidade pode ocorrer o abandono do bebê e a necessidade de reparação pela separação pode travar. Nesse caso a atenção necessária à amamentação pode ser minimizada, não porque a mulher não se sinta capaz de amamentar, mas por ficar presa ao corpo vitorioso da expulsão.
Os sentimentos, os hormônios e a experiência prática que regem a amamentação exigem que a mulher acesse o seu quarto corpo relativo à fase de procriação e para algumas esse corpo pode ser mais facilmente acessado, de acordo com as histórias psíquicas, culturais, familiares.
Se o corpo grávido é o corpo que enche, que basta-se a si mesmo, um corpo narcísico que pulsa para cima, para a frente, para os lados e para trás em expansão, o do parto é um corpo valente, determinado, rejeitador, que pulsa para baixo e para fora. O corpo do pós-parto é a síntese entre os dois. Se a mulher no pós-parto retornar com muita sede ao pote do corpo narcísico terá tendência a segurar o leite para si, controlar as pessoas, encolerizar-se; é o corpo da retenção de leite, do muito leite, mas empedrado, o leite que não sai. Se ao contrário, ficar presa ao corpo do trabalho de parto o resultado será de tristeza pelo corpo de grávida perdido, sensação de fraqueza diante da demanda do bebê. Mais comum nesse caso é a demora da descida do leite, sensação de que não há leite o bastante. As variáveis são muitas e as combinações, de acordo com as fases de aleitamento, também.
Após a cirurgia
É incrível como as mulheres conseguem ser bem-sucedidas na amamentação após uma cirurgia, é a prova de que o corpo antropológico em fase de procriação sente que venceu um grande desafio mesmo sem o processo do parto natural. Quando a mulher passa por uma cirurgia, especialmente quando não viveu um trabalho de parto em que os hormônios vão preparando o corpo para a produção de leite, o cérebro não tem como acessar que o corpo pariu, não imediatamente após a cirurgia, como ocorre no parto bem-sucedido. Após a cirurgia o corpo precisa levar água para cicatrizar o corte e ainda assim sobra água para a produção de leite. Como o corpo não viveu o processo e o cérebro fica tentando acessar como o bebê não está mais ali, há uma cisão interna nas funções, que vai além do corte na barriga. A mulher, minutos após a cirurgia, costuma ficar confusa ou plácida e não experimenta sentimentos de ter vencido na luta pela sobrevivência. Como não participou do processo e não expulsou o bebê, ela também não sente um desejo visceral e imediato de reparar a separação via amamentação. Ela não consegue segurar o bebê, não pode sentar e depende de outras pessoas para ajudá-la na amamentação.
Quando essa ajuda externa custa a chegar ou é inadequada, a mulher que viveu a cesariana pode experimentar variadas dificuldades na amamentação, entre elas a de não reconhecer o filhote como sendo o mesmo filhote que ela abrigava no ventre. Os transtornos da amamentação nos dias consecutivos após a cirurgia são bastante semelhantes aos vividos após o parto e dependem bastante do histórico de cada mulher. A diferença substancial é física. Enquanto a mulher que viveu o parto está totalmente apta para andar, sentar, carregar o bebê já minutos após parir, a mulher que sofre a cesariana necessita de cuidados maiores e apoio externo. Em pouco tempo ambas, em relação à amamentação, emparelham-se na capacidade de cuidar e amamentar os bebês.
As dificuldades de amamentação não são meramente culturais, embora a pressão do mercado que produz leites artificiais e mamadeiras a rodo inegavelmente interfira no processo. Traços obsessivos de caráter, como impossibilidade de “ver” quanto de leite entra na barriga do bebê, por exemplo, estão entre os distúrbios mais comuns em relação ao aleitamento humano. É claro que nos bastidores desse distúrbio há fatores culturais e mercadológicos, já que os mililitros marcados na mamadeira não aparecem nos seios.
Mulheres que se julgam “sujas” ou “fracas” por dentro tendem a achar inconscientemente que seus corpos não são capazes de produzir um alimento bom ou em quantidade suficiente para alimentar seus bebês. O universo psíquico percorre caminhos harmônicos com os hormônios e interfere na produção e/ou na ejeção de leite.
A necessidade de simbiose do bebê e as angústias de libertação da mulher
Para o bebê a necessidade de reparação inicial por meio da amamentação é apenas um primeiro passo de um longo processo de simbiose e diferenciação da mãe. Ele nasce sem perceber que é um ser separado da mãe, mantém-se assim por cerca de três meses e só aos seis meses é que começa a sentir que de fato a mãe é alguém com outro corpo. Aos oito meses ele costuma ter a primeira grande crise de diferenciação e a angústia dessa fase é aplacada de forma ideal pelo seio da mãe, que traz segurança, uma espécie de garantia de que a mãe pertence a ele. As crises de diferenciação vão sendo resolvidas lentamente e por volta dos dois, três anos o bebê costuma estar emocionalmente e corticalmente pronto para viver sem mamar em sua mãe.
Em contrapartida as mães, como mulheres independentes que já eram antes da experiência da gravidez, sentem-se preparadas para viver fora do processo de simbiose já nos primeiros meses após o parto. Para muitas a amamentação e a necessidade expressa pelo bebê de prolongar o aleitamento por até dois anos ou um pouco mais é vivida como uma verdadeira prisão a um estado semi-simbiótico que pode gerar conflitos e frustrações para a vida adulta. A ansiedade pela separação corporal do filhote, a despeito de todas as justificativas desculpabilizantes, é a maior promotora dos desmames precoces e abruptos após o estabelecimento do aleitamento, mas ao contrário do que fantasia a mulher, ela não resolve as questões de dependência do filhote humano pelo desmame induzido. Inicialmente o bebê desmamado precocemente pode até parecer bem adaptado a essa independência imposta, mas nas fases posteriores de seu próprio desenvolvimento costuma demonstrar as dores do atendimento inadequado à fase anterior.
Para o bebê a amamentação é mais do que alimento ideal em temperatura perfeita com hormônios humanos e nutrientes fortalecedores do sistema imunológico. Ela significa uma viagem rumo à autonomia. Se nos três primeiros meses ele necessita mamar sem grandes intervalos, sendo a amamentação o seu único prazer e melhor forma de exercitar-se, com quatro meses ele já ri, acompanha a mãe virando a cabeça e o tronco, bate pernas e braços quando vê o pai ou outra pessoa que sorri para ele amorosamente. Aos nove, dez meses, ele consegue ficar sem mamar por períodos maiores, já tenta segurar a colher, aprecia alimentos e brinca com objetos levando-os à boca. O prazer, ainda essencialmente oral, começa a se deslocar para outras áreas do corpo, ampliando o repertório gradualmente.
A partir do momento em que anda e afasta-se da mãe, por volta de um ano, o bebê descobre inúmeros prazeres, inclusive motores, mas somente quando entende que a mãe, mesmo sendo separada dele não vai abandoná-lo, que vai e volta, ausenta-se e retorna oferecendo brincadeiras, leituras, passeios e comidas gostosas de morder, ele sente-se preparado para largar o prazer que garantiu sua vida até ali. É pela diversidade de prazeres, oferecidos gradualmente, que o bebê desmama feliz e apto por volta dos dois, três anos.
Toda grávida deveria ler este texto.
ResponderExcluirApós um parto traumático, a amamentação é A chance de reparação. Ver o bebê que crescia dentro da gente crescendo do lado de fora graças ao "suco de mãe" é uma das maiores satisfações que uma mulher pode ter.
Beijinhos,
Flávia do Iglu.
Quando Clara nasceu, através da cirurgia, e foi colocada ao meu lado, pedi para que a levassem.
ResponderExcluir"Como não participou do processo e não expulsou o bebê, ela também não sente o desejo visceral e imediato de reparar a separação via amamentação."
Não foi imediato, felizmente o desejo veio depois, algumas horas, com pernas ainda anestesiadas e todas as dificuldades de posição e tudo mais.