sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Virou o leite!

Cláudia Rodrigues *
O Ministério da Agricultura e a Associacão Brasileira dos Produtores de Leite uniram-se em uma campanha nacional, o Programa de Modernização do Setor Produtivo de Leite e Derivados, que visa aumentar o consumo de leite industrializado e reduzir o de leite natural entre os brasileiros.
A campanha se empenha em combater os produtores informais em dois pontos fundamentais. Primeiro eles seriam responsáveis por 40% a 50% do consumo nacional de leite. Segundo estariam colocando em risco a saúde da população por falta de inspeção técnica pois o leite informal é sujeito a contaminações por agentes patogênicos, como o da tuberculose e da brucelose.

“Todos os agentes patogênicos, incluindo os da tuberculose e da brucelose, morrem depois de três minutos de fervura normal, caseira”, explica o veterinário Antônio Carlos Machado da Rosa, professor da Universidade Federal de Florianópolis, em Santa Catarina. Ele lamenta que a campanha para o aumento de consumo do leite não leve em consideração o aspecto social e cultural, ficando presa apenas às vantagens para a indústria. “A indústria deve e pode coexistir com o leite cru entregue nas portas das casas, à exemplo da Inglaterra, país hiperindustrializado que conta com esse sistema; o que não dá para conceber são argumentos artificiais, quando, em matéria de saúde, o que interessa é informar a população da necessidade do leite natural ser fervido e nunca bebido cru”, diz Machado da Rosa.

Os comentários sobre os perigos do leite natural, amplamente divulgados pela mídia, são maledicentes quando não informam sobre a segurança do leite depois de fervido. Além disso, uma pesquisa divulgada pelo Milkpoint, feita com 1.554 consumidores de leite informal de Minas Gerais e São Paulo, verificou que apenas 4,9% das pessoas que haviam bebido leite cru tiveram algum problema de saúde. A mesma pesquisa atestou que de todos os entrevistados, 98% consomem leite apenas depois de fervido.
Outro argumento da campanha, baseado numa pesquisa divulgada em meados de maio desse ano, pela Rios Estudos e Projetos, a pedido da Tetra Pak, revelou que a produção de leite informal seria de 46,9% . Descoberto o vilão, causador de danos à pecuária leiteira nacional -- o leite informal --, seria somente uma questão de tempo e aplicação de leis para terminar com esse mercado ou enfraquecê-lo o suficiente para que não atravancasse mais o desenvolvimento da pecuária de leite. Mas os problemas da pecuária leiteira não se encerram no leite informal, e, talvez, nem se iniciem aí.
“Há um verdadeiro enigma no mercado de leite do Brasil. Se o leite vendido sem inspeção correspondesse realmente de 40% a 50% da produção total, por que a indústria laticinista não sairia correndo atrás dele, já que tem trabalhado com capacidade ociosa, muitas vezes recorrendo a importações do produto”? questiona Sebatião Teixeira Gomes, professor da Universidade Federal de Viçosa, MG, especialista em economia rural.
O enigma começa a ser destrinchado quando se leva em consideração o último Censo Agropecuário (95/96) do IBGE, da produção nacional de leite, calculada em 17,93 bilhões de litros por ano. Nessa época, 21% do leite produzido destinavam-se ao autoconsumo, 61% já estavam sob inspeção oficial e somente 18% estariam no mercado informal. “Como o Censo Agropecuário foi feito em 1995/96, ao incluir o leite sob inspeção estadual e municipal nos dados, em 1998, o percentual sob inspeção federal, estadual e municipal, conjuntamente, deverá ser maior do que 61% e, por conseqüência, o percentual sem inspeção será menor do que 18%, possivelmente não ultrapassando 15% ”, diz Gomes. Segundo ele, o fato do mercado informal representar ainda menos do que 18% da produção nacional, número bastante inferior ao divulgado pela campanha, não significa que não deva ser levado em consideração, mas levanta questões que foram deixadas de lado pela campanha e que estariam condicionando a modernização da produção de leite no Brasil. “O efeito desastroso na modernização da produção de leite do país está nas importações, subsidiadas ou com dumping no país de origem”, revela Gomes. No ano passado, por exemplo, a importação de leite chegou a 2 bilhões e 400 milhões de litros de leite e derivados.
Outra razão, de bastante peso, para a anunciada crise da pecuária seria justamente a competição entre sistemas de produção de menor e de maior custos, justamente dentro do mercado inspecionado. A região Centro-Oeste, especificamente os produtores do Triângulo Mineiro, Alto Parnaíba em Minas Gerais e Goiás, têm sistemas de produção de menor custo, concorrendo duramente com as regiões do sul, sudeste de Minas e São Paulo, com custos mais altos. “A própria tendência da produção de leite dos últimos anos, concentrando-se nas regiões de cerrado, confirma a tese de que a concorrência maior está dentro do mercado de leite inspecionado e não entre os produtores de mercado sem inspeção”, explica Gomes.
Curiosamente, as regiões Centro-Oeste e Sudeste são as que concentram a maior porcentagem de grandes produtores de leite, aqueles que produzem mais do que 200 litros por dia. A sudeste com 5,4% de grandes produtores e a Centro-Oeste com 3,4%. As outras regiões não chegam a 1% cada uma, daí a média nacional de grandes que não chega a 2%.
Ainda no último censo agropecuário do IBGE, aparece o calcanhar de aquiles, provavelmente não da pecuária brasileira mas da indústria do leite. É que 87,7% dos produtores de leite no Brasil são pequenos produtores, produzem até 50 litros por dia. E têm nas mãos 36,1% da produção de leite do país. Os 1,8% maiores produtores, que comercializam mais de 200 litros ao dia, responsabilizam-se por 27,9% da produção nacional. Os 26% restantes dividem-se entre os pecuaristas que produzem mais de 50 litros por dia e menos de 100, representados por 7,0% dos produtores, e menos de 200 litros por dia, representados por 3,5% dos pecuaristas.
Em resumo, os pequenos tinham o poder e não sabiam e agora tratam de exercê-lo indiferentes aos apelos da indústria. “A parceria entre produtores e industriais é histórica e deve existir mesmo depois que a crise passar”, proclama Jorge Rubez, presidente da ABPL, em artigo divulgado na página oficial da instituição (www.leitebrasil.org.br).
Enquanto os produtores se afastam, cansados de distribuir leite de graça à população em protesto à voracidade das indústrias de insumos e empresas receptoras de leite, como já fizeram tantas outras vezes em tantas outras “crises”; a indústria vai atrás do leite derramado. Numa reunião realizada na Leite Brasil, recentemente, os fornecedores de máquinas, sêmem, medicamentos, minerais e outros, se comprometeram a apoiar a pecuária leiteira para que saia do sufoco.
Talvez seja tarde demais. Os pequenos e médios produtores estão virando os tachos que produzem para outro lado e dessa vez não é dando leite de graça nas ruas. Descobriram um jeito de gastar menos em custos e ainda ter aumento de preço.
O doce deleite do mercado verde
O enigma começa a ser decifrado. O problema não é ser informal, mas ser pequeno e estar descontente. Os grandes produtores, vinculados à indústria, necessariamente produzem menos de um terço do leite do país e como lidam com grandes volumes e com todas as vantagens de ser grande, não sentem tanto o custo dos insumos. Em contrapartida, sozinhos, não suprem a indústria, que acaba importando leite e causando baixa nos preços nacionais.
Os pequenos e médios produtores vêm acumulando perdas e problemas com a indústria de laticínios. Formais ou informais, estão ficando rebeldes, espécies de neo-comunistas, desde que chegaram a gastar 0,18R$ para produzir um litro e em troca receberam 25R$ da indústria de leite e derivados.
Saem à francesa do mercado convencional, quase despercebidos, mas a indústria, principalmente, está sentindo o impacto, daí a campanha dos grandes produtores, apoiada pelo governo, que mantém uma histórica relação de proximidade com os maiores, subsidiando compras de equipamentos, tecnologias e insumos.
“Para os grandes produtores a oscilação de preços e o custo alto de insumos não chega a fazer uma diferença, mas os pequenos e médios não conseguem competir nesse mercado, ficam espremidos entre a indústria de insumos e a empresa que compra o leite e paga como quer, quando e quanto quer”, diz Ângela Escosteguy, médica veterinária que aponta uma das saídas desse leite que ninguém sabe onde anda e que está sumindo das indústrias: a pecuária orgânica.
Ainda menos difundida do que a agricultura orgânica, que só em 1999 cresceu 50% no Brasil, a pecuária ecológica tem recebido de braços abertos a crise da indústria do leite. A produção total de leite sob inspeção e estimativa da produção sem inspeção, segundo dados do IBGE, cresceu de 14,484 milhões de litros em 1990 para 19,133 milhões de litros em 1999. O número de produtores que fornecia leite para a indústria em 1997 era de 175, 450 mil produtores, caiu para 151,926 mil em 1998 e em 1999 entrou o ano em 133,367 mil produtores.
Paralelamente, estudos realizados na Prolac( produtores de laticínios de Colorado), uma associação de 140 famílias produtoras de leite orgânico no Rio Grande do Sul, revelam que a redução de custos chega a 70% e o preço de mercado é até 20% mais alto do que o convecional. A saída que antes era coisa de naturebas e alternativos em geral, já virou prática para muitos produtores de leite, simplesmente por ser rentável. No Rio Grande do Sul, além da Prolac, existe a Copasul ( Cooperativa de Produtos de Campinas do Sul), que fabrica também derivados, como queijos e outros. Em Minas Gerais tem a Monte Verde e em São Paulo o Instituto Biodinâmico. Existem centenas delas e de outras associações, nem todas orgânicas, que tentam escapar dos altos custos dos insumos e dos baixos preços pagos pela indústria. Mas o sistema ecológico parece ser o mais forte, se espalha como erva daninha, resiste a cortes, retaliações, se adapta a leis até desvantajosas, muitas vezes, e mesmo assim pipoca em todo lado.
Discreto, uma das suas principais características é justamente não sobreviver de centralização e monoculturas, uma estratégia econômica bastante flexível para enfrentar qualquer agrúra do mercado e possivelmente uma das causas da dificuldade de se conseguir arrancar dados precisos sobre seu funcionamento, com jeito patchwork de ser. “No caso do leite já confirmamos que o trabalho ecológico bem feito produz um leite a 0,10R$ e além disso contamos com o consumidor, cada vez mais exigente em termos de qualidade real e menos suscetível ao marketing pelo marketing”, diz Ângela Escosteguy, especialista em pecuária ecológica e consultora da área.

Passo-a-passo do longa vida

Era tão rico e famoso, o leite, que foi pesquisado nos mínimos detalhes. Graças a ele o chocolate chegou à atual consistência e o sorvete virou uma das sobremesas mais difundidas em todo o mundo. Pela popularidade de seu sabor foi incansavelmente modificado. Primeiro virou pó, depois foi condensado, pasteurizado e embalado em saquinhos, desnatado e até vitaminado. Finalmente chegou a um estágio tão moderno que já não se transforma mais em iogurte ou coalhada -- e sua gordura não vira mais manteiga.

Um dos alimentos mais rapidamente perecíveis da natureza conseguiu o inconcebível, graças à ciência tecnológica: ficar seis meses imperecível. É o leite de caixinha processado em UHT -- Ultra Hight Temperature – cujo processo é assim: depois de filtrado passa, a uma temperatura de cerca de 70ºC, por bombas de compressão de alta potência, responsáveis pela fragmentação dos glóbulos de gordura, que homogeneizam o líquido. Em seguida a temperatura aumenta até 150ºC, durante 2 a 4 segundos, eliminando 100% dos microorganismos naturais do leite. Tudo isso é feito dentro de uma máquina, a TBA, Tetra Brik Asseptic- onde estão também, ainda abertas, as embalagens feitas de polietileno, alumínio e papel que, antes de receberem o leite, são esterilizadas com peróxido de hidrogênio a 35%. Para que o peróxido seja retirado, pois faz mal à saúde ingerir água oxigenada a 35%, a embalagem passa por jatos de ar hiperaquecido, esterilizador ultravioleta, e finalmente recebe o leite, já com o citrato de sódio adicionado para estabilizar o líquido. A embalagem, ainda em formato de cubo, é fechada e suas quatro camadas se fundem, também em altíssima temperatura, com o leite lá dentro. No interior da máquina ainda, os cubinhos passam por uma prensa e saltam para fora, quadradinhos. Está pronto o leite que dura seis meses.
Segundo engenheiros alimentares e nutricionistas ligados à indústria, o leite de caixinha -- que pode ser encontrado em qualquer grande cidade e também com grande facilidade nos pequenos armazéns do interiorzão do Brasil --, é melhor e mais seguro para a saúde do que o leite fresco. Exceto por ter perdido sua capacidade de virar manteiga, coalhada ou iogurte, é exatamente igual ao leite in natura fervido. “Ele perde um pouco de vitaminas, mas o leite é consumido por ser fonte de cálcio, fósforo e proteínas e isso ele não perde”, diz Heloisa Tavares, nutricionista da C2 - Editora e Consultoria em Nutrição, de São Paulo.
Com ele, bem como com os leites pasteurizados, em pó e modificados, também não é possível fazer aquele doce de leite ou a ambrosia do tempo da vovó. “Esse é o preço da civilização, mas também hoje em dia as pessoas nem têm tempo para fazer doces, queijos e iogurtes em casa e podem encontrar esses alimentos prontos em embalagens bonitas e práticas sem o risco dos agentes patogênicos”, enfatiza Ariene Van Dender, engenheira alimentar da Tecnolat, o departamento de leite do Instituto de Tecnologia dos Alimentos, o Ital, de Campinas.

“Não entendo a preocupação excessiva com patogênicos que morrem numa fervura caseira e em contrapartida não haver nenhum tipo de fiscalização de metais pesados e resíduos de antibióticos e pesticidas no leite comercializado em larga escala”, afirma o veterinário Antônio Carlos, da Universidade Federal de Santa Catarina.

O pesquisador científico do Ital, Genevaldo de Souza, explica que realmente não há, na Tecnolat, qualquer estudo ou padrão de medida de produtos químicos contidos no leite. “A gente pode até fazer, se tiver um pedido, mas custa caro, esses testes são bem complicados, mas o leite longa-vida é um excelente produto do ponto de vista nutritivo”, diz Souza.

Como é produzido em grande escala, o maior volume de leite de caixinha provém de vacas confinadas, as mais suscetíveis a doenças e consequentemente submetidas a uma quantidade maior de remédios, como vermífugos e antibióticos. Além disso, o leite homogeneizado pode misturar leites de duas ou mais raças de vacas, o que impossibilita ao consumidor ter um conhecimento real sobre o leite que está ingerindo.

Em suma, a indústria continua investindo no mesmo sistema, as tecnologias não param e já existem mais de 20 tipos de TBAs no mercado, as máquinas que produzem o longa vida.

*Matéria originalmente publicada por Cláudia Rodrigues na Revista Amanhã, em março de 2000.

3 comentários:

  1. Apesar de ter sido publicada em 2000, a matéria é mais atual do que nunca... os pequenos agricultores estão sendo cada vez mais empurrados para o que os movimentos sociais rurais têm sistematicamente denunciado como "agronegocinho", ou seja, a produção integrada ao modelo hegemônico, e o que é pior, tudo com o financiamento do Estado: pois o acesso ao crédito do Pronaf é mais fácil se o produtor for produzir eucalipto ou soja qualquer outra dessas monoculturas devastantes, ou se for comprar venenos, ou fertilizantes químicos... porém para a produção de base agroecológica, mil barreiras...
    E olha o paradoxo: poderíamos estar incentivando produção para circuitos curtos locais, nestes casos um produto como o leite seria consumido ali mesmo no mercado local, relação direta ou mediada, por ex., por compras governamentais para as escolas e creches.
    Mas não, o que temos hoje é a inviabilização disso, e casos como o de uma grande indústria, vinculada à Pepsi, e crianças tomando água sanitária envasada como se fosse Todynho...
    Sinceramente, em quem confiar mais? No pequeno produtor informal com o qual vc fala diretamente, e que inclusive depende dessa relação de confiança com seu consumidor... ou os processos industrializados que não sabemos exatamente o que vai dentro?

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  2. e sabe o que mais, esta história toda de "preocupação excessiva com patogênicos que morrem numa fervura caseira e em contrapartida não haver nenhum tipo de fiscalização de metais pesados e resíduos de antibióticos e pesticidas no leite comercializado em larga escala” me lembrou totalmente a do parto domiciliar

    para escândalo de profissionais da saúde (??) estamos escolhendo ter nossos bebês em casa, este lugar tão cheio de bácterias... absolutamente conhecidas!
    as nossas próprias bactérias! contato e imunização garantida para bebês saudáveis, amamentados no peito, contato com o mundo!
    além de eu ter certeza que a casa foi devidaemente higienizada no dia do parto e as primeiras roupinhas fervidas, pois eu mesma fiz isso...

    agora, num hospitalão, como ter certeza?
    pelo contrário, a certeza é de alto risco de super-bactérias!
    eu hein...tô fora!!!

    mas são muitos interesses sustentando este tipo de discurso por trás, que de ingênuo não tem nada...

    beijão, claudinha

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  3. É isso mesmo Gab. Acabei de publicar um texto no Sul21 fazendo analogia semelhante entre os médicos do CFM, que estão a apelar na justiça pela proibição das anfetaminas- decretada pela Anvisa na última terça-feira - e os agricultores que receitam pesticidas e veterinários que receitam anabolizantes. É tudo uma coisa só, um sistema sujo, muito sujo, que não cede e então vai precisar ser quebrado.

    cláudia

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