LEITURAS DA FOLHA
Bebê-coisa, bebê-problema
Por Cláudia Rodrigues em 28/11/2005
A capa da edição online do caderno de saúde da Folha de S.Paulo de quinta-feira (24/11) trouxe um bebê na foto, uma chamada para os problemas de sono das crianças entre 0 e 2 anos e a novidade já no lide: uma tese de doutorado, ainda em fase inicial, da pediatra e psicoterapeuta Eduardina Teles Tenenbojim, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, que investiga a relação mãe-bebê como uma causa relevante dos distúrbios de sono em idade tão precoce.
Prometia, mas depois de dois parágrafos que deram voz à médica, a matéria descambou, como costumam descambar as matérias sobre questões humanas, para o tecnicismo desenfreado. As dicas da médica dariam muito pano para manga: "Bebês que não dormem acabam por trazer a síndrome de privação de sono para o cuidador, que geralmente é a mãe. Ela se sente irritada e chega a ter dificuldades de concentração e de memória. Por outro lado, na relação com a criança, revelam-se também dificuldades que a mãe está enfrentando em outro setores de sua vida. Essas dificuldades se manifestam sob a forma de insônia no bebê".
A tese da médica brasileira não é pioneira, ainda que estudos com enfoque na relação mãe-bebê, que remetem à teoria do vínculo, tenham ficado, digamos, fora de moda. E como a Folha perde o eixo, mas não sai do universo fashion-tecnicista, a matéria virou um amontoado de contradições entre médicos, queixas de mães e, claro, não poderiam faltar, as 15 dicas para fazer o bebê dormir, as receitas; como se todas as mães tivessem sensibilidade igual para entrar no ritual via canções de ninar, como se todos os filhos gostassem de paninhos ou de dormir no berço sem embalo. O bebê-coisa está em todas as dicas, nenhuma delas traz o bebê pessoalizado e suas tentativas de dizer algo do jeito que afeta mais eficientemente seus cuidadores.
Saltam aos olhos informações trazidas por uma médica que resolve destrinchar algo caótico nas relações humanas modernas, desafiando justamente o sistema que leva crianças em tenra idade a consumirem calmantes, mas tudo o que se consegue é um punhado de dicas fast food; o leitor fica boiando na superfície, como sempre, e já levemente engajado na solução que satisfaz o mercado: o uso de calmantes específicos para bebês. Afinal qualquer das dicas não é novidade e nem há consenso entre os médicos sobre o uso de chás, ursos ou outras atitudes maternas que resolvam o problema dos bebês que dormem pouco. Alguns pediatras acham que amamentar de madrugada é uma boa idéia, os odontopediatras consideram a amamentação no meio da noite um problema. Há os que indicam mamadeiras, para não viciar no peito, os que receitam chupetas, os que são radicalmente contra a mais antiga das maneiras de fazer um bebê dormir: embalando.
Realidade gritante
No meio dessa guerrilha, mais pessoal do que científica, o remédio vira um meio termo que acomoda pais de um lado e médicos de outro. "Nos bebês, o uso de medicação para insônia não é indicado. Meu objetivo é chegar a fórmulas de intervenções breves, como consultas terapêuticas, que forneçam resultados consistentes", revela Eduardina Tenenbojim. Mas a Folha não vai atrás do que está nos bastidores dessas consultas terapêuticas. A médica já sabe, por exemplo, que situações de luto enfrentadas pelas mães costumam causar maior freqüência de falta de sono nos bebês, uma outra dica que foi desprezada.
Sim, o que a médica está pesquisando é justamente a relação entre mãe-bebê e o que a ausência de sono dos pimpolhos tem a ver com isso. O leitor mereceria mais informação, poderia saber o que escreveu a autora de Bebês, mães em revolta, Rosine Debray, a respeito dos distúrbios psicossomáticos dos bebês, ou ser remetido às conclusões dos exaustivos estudos sobre a dupla mãe-bebê a que dedicou uma vida inteira Margareth Mahler, autora de O nascimento psicológico dos bebês. Pobre Wilhelm Reich, que morreu adivinhando tudo o que estava por vir, uma sociedade impaciente, vítima dos pocket books e de soluções imediatas e técnicas para lidar com eles, os seres mais primitivos e necessitados de contatos profundos, os bebês de tenra idade.
Em nenhum momento o texto leva às mães de bebês que dormem pouco ou mães que gostariam que seus filhos dormissem mais a essa realidade gritante, que é a fabricação de sintomas produzidos por deficiências no contato genuíno.
Comprinhas, coisinhas
A negação de que os bebês necessitam de quantidade em termos de relacionamento é tão potente em nossa mídia que a repórter não ousa perguntar mais, ou quem sabe escrever melhor o que ouviu, porque isso culpabilizaria as mães. E culpar as mães é um tabu na mídia, já virou uma espécie de sabedoria universal: a mãe não tem culpa de nada do que ocorre com seu bebê e não deve se sentir culpada. É estranho, assumir responsabilidades alivia a culpa, e não o contrário. Mesmo assim a coisa toda caminha para a desculpabilização em primeira instância, até porque é respaldada juridicamente: o período de licença-maternidade, por exemplo, que no Brasil é de quatro meses, configura um contra-senso, já que a OMS recomenda seis meses de amamentação exclusiva no peito e desmame gradual que mantenha a criança com leite materno até os 2 anos de idade. Como fazer o tricô de um texto que dá uma informação por baixo e passa a laçada por cima?
É fácil, é só passar a mão na cabeça das mães, sobrepondo o acúmulo de conhecimentos adquiridos em settings terapêuticos nos últimos 100 anos com dicas de como fazer errado para dar certo. É simples, é só errar o ponto e continuar, fazendo de conta que não ficou um buraco no coração do pulôver. A mídia especializada na área mergulha numa verdadeira esquizofrenia e essa matéria da Folha é mais uma das muitas provas vivas desse método jornalístico que tem apenas um compromisso: mercadológico.
O pacote informativo que a Folha produziu para a mamãe vigilante-noturna inclui comprinhas, coisinhas, remedinhos e soluções paliativas e objetivas. É uma pena, porque tanto a pediatra que está pesquisando as relações entre mães e filhos e os distúrbios de sono dos bebês quanto os outros médicos entrevistados atestam que a relação da dupla mãe-bebê precisa ser mais francamente investigada – e não há nenhuma, entre as 15 dicas, que sugira às mães uma revisão sincera de seu tempo com o bebê, tanto em qualidade quanto em quantidade.
Sempre na casca
Não se fala do prazer de fazer um bebê dormir e de uma eventual dor inerente a esse prazer, do trabalho extra que a maternidade traz, de como algumas mulheres se ressentem pelo tempo que precisam dedicar aos bebês em fase oral e de que maneira esses sentimentos adultos interferem no desenvolvimento emocional da criança. Os médicos entrevistados – a repórter esqueceu freudianos, reichianos, lacanianos, junguianos – certamente têm muito mais a revelar, mas não foram suficientemente ouvidos; matérias não podem ser consistentes porque consistência virou sinônimo de chatice.
Reina a superficialidade, essa pressa ignorante que nos jogou longe do simples ritual de fazer um bebê dormir; embalando ou não, dando ou não chá de camomila, com ou sem paninho, ursinho ou o diabo a quatro que inventaram, como a técnica de deixar chorar. A esquizofrenia das matérias na área da puericultura, como essa última da Folha, é tão grande que começamos a ler um texto que afirma ser a falta de sono das crianças um possível problema de relação entre a mãe e filho(a) e terminamos levados a concluir que o problema está no bebê. Eles não são tão inteligentes em tenra idade como a sociedade adulta, egoísta, egotista e comercial desejaria. Eles não são capazes, tão pequenos, de se auto-reprimirem, a não ser na marra ou via engodos.
Às mulheres que se transformaram em mães só resta afastarem-se cada vez mais dos condicionamentos inerentes à função materna. Já vêm, com muito apoio da mídia, desaprendendo a parir, abstendo-se de amamentar e agora já não sabem mais fazer o bebê dormir. Matérias desse tipo atrapalham ainda mais e esse é o problema maior. O leitor chega a entrar em contato com algo interessante, mas é puxado para as coisificações típicas do jornalismo apartado das singularidades humanas. Parece piada que, num universo de pesquisas sérias e abundantes sobre as interações entre mães e filhos, as informações traduzidas pela mídia fiquem sempre na casca, fora do corpo e do coração, objetivas e desumanizadas.
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