1973. Estava com 9 anos quando acordei para uma palavra jamais ouvida antes: crise. Morava numa pequena cidade no interior do Rio Grande do Sul; Quaraí, que fazia fronteira com Artigas, no Uruguai. Essa palavra, como algumas outras, era praticamente igual nas duas línguas e tão falada de um lado como de outro da bela ponte que faz uma curva sobre o Rio Quaraí. A crise ou La crisis era assunto no único canal de TV que pegava na minha casa, o canal uruguaio, TV Artigas, canal 3; era assunto do dentista brasileiro, do açougueiro uruguaio, da moça da Calle de lãs Lanas e também da minha professora particular de matemática, que entre uma conta e outra tomava aveia de colher numa xícara enorme a fim de melhorar dos nervos e esquecer do filho desaparecido. A crise era uma bruxa má que namorava um rapaz chamado Tupamaro, ambos haviam levado o filho da professora para um lugar desconhecido, ela esperava que estivesse a salvo na Europa, aguardava uma carta, mas tinha medo do homem da esquina. Alguém espiava, ele estava sempre lá parado olhando o movimento da casa. Por causa do filho ela havia sido demitida da escola em que trabalhava, as colegas promoveram as aulas particulares para filhos de amigo. Viúva, ela não podia se sustentar, vivia ilhada na casa, a mãe dependente dela a rezar pelo retorno do neto desaparecido. Com sorte talvez a crise não fosse tão má e a filha da prima do meu pai, tia Carmencita, também estivesse na Europa, um dia voltaria para tocar a harpa que a tia guardava no quarto escuro, em Montevideo, cujas janelas fechadas a ajudavam a esconder das meninas curiosas as lágrimas que teimavam em rolar. "No pasa nada, mijita, no passa nada, tu eres preciosa".
Era necessário entender aquilo, sair daquele limbo, fosse o que fosse eu precisava enfrentar a crise, afinal ela poderia aparecer também para mim. Sentada no banco da frente do Opala amarelo modelo 1972, resolvi que era o dia e a hora de enfrentar a crise; estiquei a saia, respirei fundo e fiz a temida pergunta: pai, o que é crise? Ele deu uma longa explicação que de maneira alguma envolvia harpas, jovens desaparecidos ou salvação via Europa, nenhuma frase sobre a tristeza das mães que choravam escondidas pelos cantos. Por outro lado disse algo que abalou minha estrutura: em 30 anos, ou seja, quando eu fosse grande como ele e tivesse meus próprios filhos, não poderia dirigir um carro porque não haveria mais gasolina, a crise real era a falta do petróleo, um líquido que valia mais que o ouro, dele se extraía a gasolina que abastecia o Opala, naquele momento sendo estacionado em frente à casa de Dona Neiva, a professora, que tinha medo do homem-guarda da esquina, sempre a postos. Por um momento pensei que meu pai também tivesse medo do guarda, mas ele o cumprimentou, não era medo, talvez um mal-estar pelo excesso de coca-cola no almoço.
Continuei muito preocupada com a crise, avisei aos meus colegas que também eles não poderiam dirigir carros quando crescessem porque até lá toda gasolina do m
undo estaria desaparecida. Passados alguns dias, depois de observar os meios de transporte que não precisavam de gasolina, resolvi que bicicleta não seria um meio muito bom para o meu futuro, certamente eu teria filhos e precisaria carregá-los, então pedi um inusitado presente de Natal; uma égua porque ela ficaria tendo filhotes de maneira que quando eu tivesse filhos poderia perfeitamente ter uma bela carroça como as dos filmes de mocinho, tão grande e forte que até mesmo mudar de cidade seria possível.
Meu colega Marcelo, mais prático e menos romântico, inventaria ele mesmo um carro movido a vento; ele chegou a desenhar, mais parecia uma nave dos Jetsons. A vida continuou com cavalos e éguas na fazenda, que eram de todos e teriam filhotes, mas antes mesmo de nascer uma potranca que seria minha, a crise da falta de petróleo foi substituída por notícias de descoberta de petróleo. E especialmente de maquinários para extração do óleo negro, que valiam muito mais do que milhares de barris do precioso líquido e no rabo do cometa daquela crise um império bélico foi erguido.
Em 44 anos presenciei ainda mais uma meia-dúzia dessas anunciadas crises econômicas e todas elas alcançaram o objetivo de seu próprio eixo: faturar mais, concentrar mais poder, renda e investimentos bélicos nos países desenvolvidos. O anúncio de cada crise sempre chegou desvalorizando terras, empresas, usinas, cooperativas e bancos nacionais. Desvalorizados os bens aqui, os países anunciantes da crise compravam tudo por uma bagatela, fomos ganhando sócios estrangeiros a cada crise. Será que agora, nessa nova crise, teremos algo novo nesse front, qualquer coisa assim tão surpreendente como a prima Carmencita e o filho da professora Neiva aparecendo sãos e salvos depois de todos esses anos, ambos montados numa égua do futuro?
Era necessário entender aquilo, sair daquele limbo, fosse o que fosse eu precisava enfrentar a crise, afinal ela poderia aparecer também para mim. Sentada no banco da frente do Opala amarelo modelo 1972, resolvi que era o dia e a hora de enfrentar a crise; estiquei a saia, respirei fundo e fiz a temida pergunta: pai, o que é crise? Ele deu uma longa explicação que de maneira alguma envolvia harpas, jovens desaparecidos ou salvação via Europa, nenhuma frase sobre a tristeza das mães que choravam escondidas pelos cantos. Por outro lado disse algo que abalou minha estrutura: em 30 anos, ou seja, quando eu fosse grande como ele e tivesse meus próprios filhos, não poderia dirigir um carro porque não haveria mais gasolina, a crise real era a falta do petróleo, um líquido que valia mais que o ouro, dele se extraía a gasolina que abastecia o Opala, naquele momento sendo estacionado em frente à casa de Dona Neiva, a professora, que tinha medo do homem-guarda da esquina, sempre a postos. Por um momento pensei que meu pai também tivesse medo do guarda, mas ele o cumprimentou, não era medo, talvez um mal-estar pelo excesso de coca-cola no almoço.
Continuei muito preocupada com a crise, avisei aos meus colegas que também eles não poderiam dirigir carros quando crescessem porque até lá toda gasolina do m
Meu colega Marcelo, mais prático e menos romântico, inventaria ele mesmo um carro movido a vento; ele chegou a desenhar, mais parecia uma nave dos Jetsons. A vida continuou com cavalos e éguas na fazenda, que eram de todos e teriam filhotes, mas antes mesmo de nascer uma potranca que seria minha, a crise da falta de petróleo foi substituída por notícias de descoberta de petróleo. E especialmente de maquinários para extração do óleo negro, que valiam muito mais do que milhares de barris do precioso líquido e no rabo do cometa daquela crise um império bélico foi erguido.
Em 44 anos presenciei ainda mais uma meia-dúzia dessas anunciadas crises econômicas e todas elas alcançaram o objetivo de seu próprio eixo: faturar mais, concentrar mais poder, renda e investimentos bélicos nos países desenvolvidos. O anúncio de cada crise sempre chegou desvalorizando terras, empresas, usinas, cooperativas e bancos nacionais. Desvalorizados os bens aqui, os países anunciantes da crise compravam tudo por uma bagatela, fomos ganhando sócios estrangeiros a cada crise. Será que agora, nessa nova crise, teremos algo novo nesse front, qualquer coisa assim tão surpreendente como a prima Carmencita e o filho da professora Neiva aparecendo sãos e salvos depois de todos esses anos, ambos montados numa égua do futuro?
Mas tu escreve bem, hem, guria?
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