Cláudia Rodrigues *
"Diagnóstico psiquiátrico exige conversas" é o título da matéria de saúde publicada pela Folha de S. Paulo no domingo (12/9). No caso da maior interessada pela publicação da matéria, a Associação Brasileira de Psiquiatria, a tal exigência de conversa se refere aos pacientes psiquiátricos e suas famílias, que deveriam se comunicar melhor com os psiquiatras, o que melhoraria, entre outras coisas, o acerto do diagnóstico e da medicação. A ABP está em campanha, segundo publica a Folha -talvez abrindo a campanha-, para desmistificar essa especialidade da medicina e seus procedimentos, fazendo com que "a ida ao consultório psiquiátrico tenha a mesma conotação de uma ida ao cardiologista, por exemplo". A conversa que falta entre pacientes, parentes e médicos também faltou na "reportagem", que não ouviu pacientes e parentes nem tentou entender, por meio da história, as razões que levam a ABP a lançar tal campanha. O texto revela que a própria Organização Mundial de Saúde considera difícil definir o que são transtornos psiquiátricos, e não deixa de ponderar que a concordância entre dois especialistas apresenta médias entre 0,7 e 0,9, mesma faixa da diabetes e da hipertensão.
Foi importante fazer a ponderação para salvar a matéria-press-release, e fundamental ter desviado do problema medicamentos/laboratórios/capacidade reflexiva do paciente. Isso foi feito com muita elegância, porque a maior autoridade entrevistada afirma que nem sempre os medicamentos são necessários, o que talvez possa ter derrubado a questão que sequer saiu da boca do repórter, ou pelo menos não apareceu na matéria. Uma outra autoridade da psicologia endossa o que diz o psiquiatra, minimizando a questão dos medicamentos psiquiátricos; assim nada foi referido em relação à farta influência desses medicamentos no mercado dos laboratórios e nem sobre os efeitos colaterais pouco difundidos, já que se confundem facilmente com sintomas dos doentes mentais. O texto, muito animador para a ABP, puxa ainda uma bombadinha a mais para começarmos a desconfiar que a dor crônica nas costas do vovô pode ser um distúrbio psiquiátrico, num outro quadrinho sob o título "Idosos podem ter sintomas diferentes".
Saúde pública- Quase uma página inteira, a matéria não deixa de apresentar dados mundiais das categorias de transtornos mentais e comportamentais ao estilo frio e pouco humanista do jornal. Só vendo para acreditar que depois de toda essa melaceira, nenhum freqüentador ou ex-freqüentador de consultório psiquiátrico tenha sido entrevistado. Nenhunzinho. Tomadores de psicoativos ou ex-tomadores... Tá bom, digamos que o preconceito com os doentes mentais seja tão grande que nem passou pela cabeça do editor pautar o repórter para ouvir o outro lado do que diz o médico: o que diz o paciente. Bem, poderia haver a fala dos parentes ou de entidades como a do Movimento Antimanicomial, para informar ao leitor as razões que fizeram e fazem a sociedade discriminar a psiquiatria e os psiquiatras.
E não seria preciso falar dos sanatórios e maus-tratos, que ainda existem e ajudaram tanto a difamar esse ofício, embora um quadrinho histórico só acrescentaria se a matéria fosse um produto jornalístico em primeira instância, como leva o leitor a acreditar. Há fatos modernos que impulsionam a psiquiatria para o mesmo e velho eixo, de um jeito mais refinado, é claro: como investimentos maciços dos laboratórios em novos medicamentos psiquiátricos. O paciente com problemas mentais é frágil porque nem sempre pode responder por si; a família dos pacientes se sente também muito fragilizada diante de um surto, e a verdade é que jamais poderia ter sido desprezada pelo texto publicado na
Folha que a parte clássica da medicina psiquiátrica, a maior, sempre se aproveitou dessas mazelas para observar os resultados, usando pacientes e suas famílias como cobaias, mudando a medicação de crise para crise, fabricando sintomas novos e jogando toda má sorte de resultados na doença, na incapacitação do paciente e na "necessidade" de internação.
O movimento antimanicomial, vale lembrar, nasceu dessa chaga e em termos psiquiátricos foi a grande descoberta no fim do século passado. Políticas públicas para o movimento ainda são poucas e de pouca expressão, ainda que seja inquestionável a reabilitação de pacientes desmedicalizados vivendo em comunidades terapêuticas ou com suas famílias. Agora, com a imprensa nada preocupada em abordar alguns dos outros lados dessa questão, como o citado no último parágrafo, com a Folha, um jornal dessa envergadura, publicando o que publicou e do jeito que publicou, as coisas tendem a melhorar para a imagem da psiquiatria, da ABP e dos oito mil psiquiatras cadastrados. Quanto aos doentes mentais, suas famílias e os novos pacientes em potencial, os carentes emocionais na terceira idade, nada se pode prever no curto prazo, senão alguma piora. A matéria-press-release foi encerrada com a divulgação do novo site da Associação Brasileira de Psiquiatria. Texto tendencioso, disfarçado de informação, deformador de opinião, omisso e parcial. Uma questão de saúde pública, mais do que de jornalismo decente, está em questão.
*artigo originalmente publicado no observatório da imprensa, em setembro de 2004
"Diagnóstico psiquiátrico exige conversas" é o título da matéria de saúde publicada pela Folha de S. Paulo no domingo (12/9). No caso da maior interessada pela publicação da matéria, a Associação Brasileira de Psiquiatria, a tal exigência de conversa se refere aos pacientes psiquiátricos e suas famílias, que deveriam se comunicar melhor com os psiquiatras, o que melhoraria, entre outras coisas, o acerto do diagnóstico e da medicação. A ABP está em campanha, segundo publica a Folha -talvez abrindo a campanha-, para desmistificar essa especialidade da medicina e seus procedimentos, fazendo com que "a ida ao consultório psiquiátrico tenha a mesma conotação de uma ida ao cardiologista, por exemplo". A conversa que falta entre pacientes, parentes e médicos também faltou na "reportagem", que não ouviu pacientes e parentes nem tentou entender, por meio da história, as razões que levam a ABP a lançar tal campanha. O texto revela que a própria Organização Mundial de Saúde considera difícil definir o que são transtornos psiquiátricos, e não deixa de ponderar que a concordância entre dois especialistas apresenta médias entre 0,7 e 0,9, mesma faixa da diabetes e da hipertensão.
Foi importante fazer a ponderação para salvar a matéria-press-release, e fundamental ter desviado do problema medicamentos/laboratórios/capacidade reflexiva do paciente. Isso foi feito com muita elegância, porque a maior autoridade entrevistada afirma que nem sempre os medicamentos são necessários, o que talvez possa ter derrubado a questão que sequer saiu da boca do repórter, ou pelo menos não apareceu na matéria. Uma outra autoridade da psicologia endossa o que diz o psiquiatra, minimizando a questão dos medicamentos psiquiátricos; assim nada foi referido em relação à farta influência desses medicamentos no mercado dos laboratórios e nem sobre os efeitos colaterais pouco difundidos, já que se confundem facilmente com sintomas dos doentes mentais. O texto, muito animador para a ABP, puxa ainda uma bombadinha a mais para começarmos a desconfiar que a dor crônica nas costas do vovô pode ser um distúrbio psiquiátrico, num outro quadrinho sob o título "Idosos podem ter sintomas diferentes".
Saúde pública- Quase uma página inteira, a matéria não deixa de apresentar dados mundiais das categorias de transtornos mentais e comportamentais ao estilo frio e pouco humanista do jornal. Só vendo para acreditar que depois de toda essa melaceira, nenhum freqüentador ou ex-freqüentador de consultório psiquiátrico tenha sido entrevistado. Nenhunzinho. Tomadores de psicoativos ou ex-tomadores... Tá bom, digamos que o preconceito com os doentes mentais seja tão grande que nem passou pela cabeça do editor pautar o repórter para ouvir o outro lado do que diz o médico: o que diz o paciente. Bem, poderia haver a fala dos parentes ou de entidades como a do Movimento Antimanicomial, para informar ao leitor as razões que fizeram e fazem a sociedade discriminar a psiquiatria e os psiquiatras.
E não seria preciso falar dos sanatórios e maus-tratos, que ainda existem e ajudaram tanto a difamar esse ofício, embora um quadrinho histórico só acrescentaria se a matéria fosse um produto jornalístico em primeira instância, como leva o leitor a acreditar. Há fatos modernos que impulsionam a psiquiatria para o mesmo e velho eixo, de um jeito mais refinado, é claro: como investimentos maciços dos laboratórios em novos medicamentos psiquiátricos. O paciente com problemas mentais é frágil porque nem sempre pode responder por si; a família dos pacientes se sente também muito fragilizada diante de um surto, e a verdade é que jamais poderia ter sido desprezada pelo texto publicado na
Folha que a parte clássica da medicina psiquiátrica, a maior, sempre se aproveitou dessas mazelas para observar os resultados, usando pacientes e suas famílias como cobaias, mudando a medicação de crise para crise, fabricando sintomas novos e jogando toda má sorte de resultados na doença, na incapacitação do paciente e na "necessidade" de internação.
O movimento antimanicomial, vale lembrar, nasceu dessa chaga e em termos psiquiátricos foi a grande descoberta no fim do século passado. Políticas públicas para o movimento ainda são poucas e de pouca expressão, ainda que seja inquestionável a reabilitação de pacientes desmedicalizados vivendo em comunidades terapêuticas ou com suas famílias. Agora, com a imprensa nada preocupada em abordar alguns dos outros lados dessa questão, como o citado no último parágrafo, com a Folha, um jornal dessa envergadura, publicando o que publicou e do jeito que publicou, as coisas tendem a melhorar para a imagem da psiquiatria, da ABP e dos oito mil psiquiatras cadastrados. Quanto aos doentes mentais, suas famílias e os novos pacientes em potencial, os carentes emocionais na terceira idade, nada se pode prever no curto prazo, senão alguma piora. A matéria-press-release foi encerrada com a divulgação do novo site da Associação Brasileira de Psiquiatria. Texto tendencioso, disfarçado de informação, deformador de opinião, omisso e parcial. Uma questão de saúde pública, mais do que de jornalismo decente, está em questão.
*artigo originalmente publicado no observatório da imprensa, em setembro de 2004
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