Por Cláudia Rodrigues em 1/3/2005
Insiste-se tanto na imparcialidade, mas quando ela é necessária, em casos graves, que envolvem maus-tratos a crianças, por exemplo, as notícias são mais do que tendenciosas.
A imprensa inteira noticiou o caso do bebê espancado por sua babá em Uberlândia (MG), flagrada pela filmagem armada pelo pai, com o propósito de certificar-se e arranjar provas dos maus-tratos.
É insuportável assistir a alguém batendo em criança; nada justifica esse comportamento, que pode ser considerado doentio. Mas, por não se justificar, não se deve esperar também que a sociedade – talvez até a polícia, ao lidar com o caso – feche os olhos para as condições de trabalho das chamadas babás. Um médico pode ser um ótimo médico, mas ninguém espera que ele saiba construir uma ponte e ninguém contrata médicos para construir pontes, a menos que haja formação comprovada nas duas áreas.
A moça que cuidava da criança, de 1 ano, trabalhava para o casal havia dois anos e oito meses. Era inicialmente uma empregada doméstica de um casal sem filhos, e talvez tenha tido acréscimo de salário pelo aumento de responsabilidades e de trabalho. Ou não. Mas se teve aumento de salário, porque de trabalho teve um aumento considerável, será possível que tivesse condições físicas e psíquicas de dar conta das duas tarefas? Obviamente não tinha, porque deu no que deu.
Quando uma pessoa adulta bate numa criança, mesmo que seja uma palmada, quando grita com um bebê, mesmo que seja um gritinho, está psiquicamente desequilibrada e provavelmente fisicamente esgotada. Bebês exigem muita paciência e urgência no atendimento; prioridade.
Estamos cegos
Mães que cuidam dos filhos e do trabalho doméstico costumam deixar de lado o rigor da limpeza, o esmero na decoração da salada, a assiduidade ao passar roupas, simplesmente porque os bebês choram por atenção e precisam ser atendidos, levados para passear. Será que as patroas brasileiras têm sido condescendentes com pessoas que têm dupla função, como a de cuidar da casa e de um bebê? E o delegado, vai direto condenar a babá, sem verificar se ela estava registrada como babá, quais as condições de trabalho da infeliz? Não se trata aqui de julgar os pais do bebê agredido, que mais do que se preocuparem com a condenação da agressora estão decerto empenhados em compensar os últimos 10 meses físicos e psíquicos do bebê, que ao entrar na fase de acordar para as relações humanas, em vez de afeto, sorriso, passeios e diversão, recebeu socos de uma pessoa que ignorava suas necessidades tão delicadas.
O caso é que nossa mídia, cada vez mais mecanicista, não vê além do certo e do errado e não sensibiliza nossos olhos burgueses, que julgam pelo lado mais óbvio, condenando em primeira instância um trabalhador desqualificado para a função, quiçá explorado em seus direitos. Existe um tipo de gente no mundo que a sociedade se recusa a enxergar, a considerar, a levar em conta: é o tipo de gente que aceita qualquer trabalho, qualquer sacrifício, qualquer acordo para ter um emprego, para manter um emprego, porque não tem coragem de roubar esse tipo de gente, jamais teve ou terá chances de ser patrão e muito menos criar idéias próprias para viver como autônomo. Esse tipo de gente pode e muitas vezes é a empregada que tem que manter os banheiros cheirosos, as janelas brilhando, a cozinha impecável, o jantar pronto e de quebra guardar a bagunça de uma família inteira, levar o lixo para a rua, ser secretária para recados, dar uma geralzinha no carro, passar a vassourinha na calçada e cuidar de um bebezinho em fase oral.
Estamos cegos para certas realidades, mesmo quando damos a sorte de ter a nosso serviço uma pessoa tão boa que agüenta tudo sem reclamar e ainda dá amor aos nossos filhos, mesmo sem ver os seus da manhã até a noite, mesmo chegando na própria casa exausta e sem ter como dar as condições mínimas a suas crianças.
Retrato da agonia
Talvez muita coisa esteja falindo em nossa sociedade, além da economia capitalista, talvez a mídia pudesse ir um pouquinho mais fundo, fazer mais perguntas, explicar melhor os fatos, sem partir de teses únicas, prontas, que atendem acima de tudo à perpetuação da má distribuição de renda, o sistema perverso que "fabrica" os melhores e condena os "piores".
Não faz mal lembrar: em São José do Rio Preto, em 1996, uma mulher que havia abandonado um bebê foi julgada pela televisão local e massacrada pela opinião pública; as pessoas perguntavam, chocadas, como podia uma mãe abandonar seu filho tão novinho num terreno baldio? A reportagem foi implacável, o repórter tratou de pegar depoimentos de revolta da sociedade, dados sobre a punição caso a bandida aparecesse, dados sobre a adoção que ocorreria findo determinado prazo estipulado pela Justiça.
Mas a mãe apareceu dois dias depois e era o retrato da agonia. Pobre, negra, desempregada, mãe de mais quatro filhos que não tinham o que comer. Em frente ao delegado a imagem da mulher dando o depoimento derrotou todas as teses sobre a bandidagem materna: mal conseguia conter os soluços, as lágrimas misturavam-se com dois filetes de sangue que escorriam de suas orelhas. Ela havia arrancado os brincos com as mãos, queria perder as orelhas, a si mesma, queria ter o bebê de volta, queria poder cuidar dos filhos, dar-lhes o que comer; nada mais.
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