Cláudia Rodrigues (*)
1998. Quando a bolha da internet crescia e o bug do milênio era um mau presságio, o maior jornal de uma capital recebia, como tantos outros na época, uma reforma como forma para lucrar mais ou deixar de não lucrar tanto. Havia crise? Sim, uma crise anunciada. A empresa familiar, pelo menos no âmbito familiar, de amigos e políticos próximos, andava muito bem. Mas tinha a bolha, o bug, o novo tempo globalizado e algo precisava ser feito.
Uma máquina gigantesca, de preço astronômico, foi comprada. Agora a impressão do jornal era melhor, as cores mais nítidas, sem falar na otimização de todo o processo. Mas a compra da máquina vinha acoplada a uma idéia: a reforma gráfica. Bem, não é qualquer dupla de jornalista e diagramador que dá conta de uma boa reforma gráfica, mas também não é um bicho-de-sete-cabeças fazer uma reforma gráfica em um jornal. Mas de repente, em 1998, era. Então foi contratado um senhor espanhol para fazer a reforma. Pagou-se fortuna ao cidadão e sua equipe. Coincidentemente, na cidade, acampava-se a Telefònica.
O dono do jornal chamou de São Paulo dois nomes do meio jornalístico. Do meio mesmo, nem grande coisa nem coisa tão pequena. Um mais político, digamos assim, e outro mais da prática propriamente dita: dois jornalistas que dariam ao jornal a cara de um grande jornal, algo como o rosto rarefeito dos quatro maiores e mais afamados do Brasil.
A entrada foi um colosso. Chegaram, claro, falando em não cortar. Mas 15 dias depois começaram os cortes, as humilhações e as perseguições. Frases de Maquiavel eram citadas a todo momento. Alguns de nós, os mais seguros e com maior autoestima, tiravam de letra a situação, sabíamos que eles tinham o poder mas não eram melhores profissionais. Outros, principalmente os que nunca haviam saído para trabalhar fora do mercado interno da cidade, andavam acuados, fofocando pelos banheiros e enfurecendo, sem querer, por puro medo, os novos chefes, que se sentiam também acossados e vítimas de armações. Cada um fantasiava como podia, de acordo com a riqueza do próprio universo psíquico. Pensamentos persecutórios a todo vapor, atitudes destemperadas, velhas rixas, manias, vícios e perversões emergiram; a redação mais parecia um hospício.
Os novos contratados começaram tirando gordurinhas, depois pedaços da boa carne, partes importantes do cérebro e da coluna vertebral do jornal. À noite reuniam-se para beber conhaque e comer nos melhores restaurantes da cidade. E as demissões tornavam-se, a cada dia, um prazer maior para eles. Adoravam surpreender demitindo pessoas que ninguém imaginava que pudessem ser dispensadas. Um dia foram longe demais; usaram a faca na jugular do secretário de redação, um velho jornalista que estava na empresa havia 30 anos.
O próprio dono do jornal pediu que poupassem o velho, mas os novos contratados, por altíssimos salários, diga-se de passagem, afirmaram que ele era o pior de todos, que era a laranja podre do cesto.
Entre os colegas, entretanto, o velho jornalista era muito considerado: aquele velho de cabelos brancos era figura importantíssima em sua terra. De pouca vaidade mas dos bons na área, do tipo que por extrema discrição e competência agradava a gregos e troianos. Era uma gramática ambulante, e dava-se o direito de corrigir qualquer colega com finíssima ironia; isso talvez tenha ferido os novos contratados... Vai saber. O fato é que esse senhor adorado pelos leitores, por seus colegas, dos mais novos aos mais velhos, foi demitido. Doeu em todos, pessoas fungavam pela redação, os puxa-sacos disfarçavam o interesse, mas a saída dele, com sua camisa de algodão de mangas curtas, seus cabelos de Einstein, doeu em cada parede daquele prédio. A sucursal de um outro grande jornal o recebeu com honras. Alguns meses depois ele morreu de câncer na garganta.
A correria na redação, o medo, as frases de Maquiavel, a pressão, as cretinices, a baixa qualidade dos textos, com pouco conteúdo reflexivo e sem revisão; tudo foi muito duro quando o jornalismo entregou-se à marquetagem, mas o mais lamentável dos horrores foi e continua sendo o desprezo por esses profissionais que passaram a vida na labuta. Há quem pense que o mundo anda para frente e que manter os barbas brancas é só um gesto de caridade. Ledo engano. Os velhões do jornalismo, além de perpetuarem uma boa ética, até porque nasceram antes da invenção das MBAs, têm maior capacidade associativa e algo que nenhum curso de extensão dá: experiência de vida, horas e horas de vôos velozes em remingtons lentas. Esse pessoal antigo, e tão desprezado, tem também o que mais falta no mercado: humanidade.
O resultado é que o maior jornal daquela capital não mudou muito, porque nada muda sem gente unida, sem afeto entre as partes, sem pulsão. Os dois contratados, que haviam chamado uma legião de amigos paulistas, "jornalistas melhores", acabaram sendo dispensados, provavelmente quando o dono da empresa caiu em si sobre os altos salários, que nunca retornaram o jornal prometido.
A situação do jornal hoje: virou motivo de chacota na cidade e agora tenta recuperar a imagem de jornal local, voltado para o público local. Vende menos, o concorrente alternativo aumentou a circulação, enquanto o grandão aumentou seu investimento em marketing e promoções.
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