Por Cláudia Rodrigues
Os bons sentimentos trazem prazer, conhecimento e trabalho, nos fazem passar bem, respirar com profundidade e funcionam, para gregos ou troianos, céticos ou crentes, como caminho natural para não cair em tentação no mal. Por meio dos bons sentimentos alimenta-se a pulsão que nos leva a exercitar corpo e mente e sem qualquer esforço solidarizamos sem interesses escusos, não traimos, não mentimos, não roubamos, não comemos por gula, doamos o nosso melhor. Enfim, nutridos de bons sentimentos conseguimos amar, alimentar e banhar o cão poodle de segunda mão que veio alimentar os sonhos da menina com animalzinho de estimação.
Para os maus sentimentos precisamos manual, eles nos tiram a razão, cegam, podem levar as pessoas a psicoses ou esoterismos sem fim a respeito daqueles pelos quais nutrem maus sentimentos. Entretanto, como disse o próprio Wilhelm Reich, não somos responsáveis por aquilo que sentimos. Só podemos nos responsabilizar pelo que fazemos a partir dos nossos inocentes, sendo bons ou maus, sentimentos.
Assim como nos apaixonamos, simpatizamos, podemos odiar e antipatizar. O ódio mal interpretado, mal sentido, pode levar a um crime, as antipatias costumeiramente levam a fofocas, intrigas e crimes morais. Podemos admirar ou invejar e como todos os sentimentos opostos, esses também andam juntos. Uma pessoa que admira pouco, inveja pouco, a que admira muito inveja muito. É diretamente proporcional.
Um exemplo: quem lê revista Caras, Gente ou de celebridades em geral lê por admiração aos seus ídolos. Por admiração e inveja numa justaposição. Os ídolos são copiados, imitados e mortos por seus fãs. Uma amiga cantora uma vez me confessou que sua inocência em dar abertura a um fã, uma oportunidade de trabalho, quase acabou com a paz em sua vida pessoal. “Foi um erro, foi um erro Claudinha” repetia sacudindo a cabeça e rindo. Ela não entendia como os bons sentimentos de admiração do fã haviam se transformado em atitudes desconstrutivas. Olhou para mim de rabo de olho e perguntou: “o sô melhor gente das antigas que fala na lata o que é sem medo de nós, né?”
Quando era pequena lembro sempre do meu pai recomendando afastamento de pessoas bajuladoras. Ele considerava os admiradores exagerados uns puxa-sacos e nem nossa sedutora inocência infantil para pedir alguma coisa era perdoada. Levei anos para compreender porque eu não podia fazer charme para ganhar as coisas, acho que processei isso, se é que processei de fato, assistindo Penélope Charmosa.
Se houvesse um manual para evitar que nossos maus sentimentos virassem más atitudes, a regra nº 1 seria prestar atenção aos nossos piores sentimentos e perceber o que estamos fazendo com eles contra nós, mesmo quando achamos que eles estão sendo dirigidos aos outros. Todo e qualquer bom ou mau sentimento volta-se para nós de uma maneira particularíssima. Somos a expressão daquilo que sentimos.
Quem se sente otário, traido, enganado, mártir vai acabar se colocando dessa forma no mundo. O efeito não vem do mundo, dos outros, mas dos sentimentos dessa pessoa em relação aos outros, ao mundo e de como ela produz, reproduz e finalmente expressa seus sentimentos. E todos nós um dia já nos sentimos otários e tivemos nossos 15 minutos de mártires ou já nos sentimos verdadeiros perversos, como a minha amiga quando teve que dispensar o fã bajulador que fazia mal nas entrelinhas. Temos dentro de nós todas as possibilidades para todos os sentimentos e suas ligações com ações diretamente correspondentes, daí a importância de prestar muita atenção no que depositamos dentro de nós sobre os outros. Em poucas palavras, já que não somos responsáveis por nossos sentimentos, eles nos inundam, devemos prestar atenção neles com os olhos bem abertos. Para o lado de dentro!
Os olhos dos enamorados com pupilas dilatadas vêm dos sentimentos inexplicáveis de desejo de fusão que, em corpos saudáveis, transforma em ações esse desejo. Um amor muito doente, muito idolatrador, não deixa o outro respirar, não permite a individualidade e a ansiedade de perceber o outro fora da simbiose. O idolatrador impede a si mesmo e o outro de eternizar seu sentimento por meio das ações: carinho, solidariedade e fundamentalmente sexo. O sexo é o carro-chefe da tranqüilidade para deixar o outro viver, ser separado.
O ódio, sentimento oposto ao do amor, tem a mesma força e exige separação. Quando é muito doente, o sentimento de ódio não basta-se pela separação justa e amigável, transforma-se em batalhas ou crimes de toda sorte até o ponto máximo da eliminação do outro; o assassinato.
Dizem os chineses que se queremos ter filhos calmos e inteligentes devemos deixar que passem um pouco de frio e um pouco de fome. O provérbio não fala obviamente de maus tratos, mas da dosagem de nossos sentimentos. Saltar ao berço do bebê ao primeiro gemido é um exagero de amor que pode trazer mais rapidamente a impaciência e o desamor. Ouvir o choro do bebê e sentir ele inundar nosso coração antes de acudir, vai provavelmente trazer sentimentos de altruísmo mais duradouros.
Infelizmente viemos de uma luta social, econômica e política inglória de negação de maus sentimentos em nós, o que só faz as ações ligadas a eles multiplicarem-se consideravelmente, do mesmo modo que banalizamos os bons sentimentos por meio de ações exageradas e costumeiramente hipócritas.
Reich conta, em Análise do Caráter, que no laboratório não era incomum que ele ou seus colegas apresentassem sintomas de peste emocional, encaravam naturalmente, mergulhavam dentro desses maus sentimentos e suas tendências para ações neuróticas e buscavam ajuda entre eles para reencontrarem a leveza da genitalidade vencendo outra vez.
A civilização humana está doente, com a peste emocional como diria o velho Wilhelm Reich. E não é por excesso de maus sentimentos, todos vivemos, todos temos, mas pela negação deles, expressa sorrateiramente por meio da hipocrisia, fofoca, bullying e crimes morais ou de fato. Mais felizes são aqueles que mergulham fundo em seus maus sentimentos podendo extrair dali um bem maior, para si mesmos e para os outros.
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