Alguns objetos ganham vida própria na nossa convivência. Tenho uma panelinha de ferro que herdei da minha mãe preta, a Dema, quando a irmã dela, a querida Ana Olívia, foi comigo recolher pertences após alguns dias de sua morte precoce, ainda antes dos 50 anos de idade. Entre tantas coisas que o meu bebê com 18 meses mexia, vi uma pequena panela de ferro e lembrei de Dema fazendo comida, me ensinando a fazer comida, rindo de eu ser desastrada, me ajudando a superar medos do fogão. Peguei a panela pesada no colo, achei que ia ser chato carregar aquele peso de volta para o ES, viajar sozinha com filhote de 18 meses e outra na barriga, 2 horas de conexão no Rio. Não, não ia levar, queria só uma lembrança que significasse algo, iria procurar nossas cartas, alguma foto minha com ela.
Avistei uma fôrma de pizza e veio o rosto de Dema sorrindo em flash, contando de quando comprava pizzas prontas no Zaffari, ali atrás. Ana aproximou-se, nos olhamos e choramos juntas. Resolvi levar a panelinha e a fôrma, com consentimento de Ana, que insistia para eu escolher mais coisas. Achei um cartão que mandei do Japão na gaveta do lado esquerdo da cabeceira de sua cama. Li o bilhete, lembrei do presente que enviei a ela, fiquei quase feliz. Dema me faz falta até hoje, por mim preferia que ela fosse viva, muito viva, mas dentro de mim é assim, inolvidável: toda vez que faço comida nessa panelinha lembro dela. Já não choro mais como antes. Logo após sua morte eu chorava diariamente toda vez que abria a torneira da pia da cozinha, às vezes passando uma roupa ou varrendo. As coisas da minha vida que vieram dela, ligadas a ela; a comida, o varal, a casa, essas coisas que naquela época com filhos pequenos eram tão corriqueiras, me faziam chorar de saudade. Depois foi passando devagar. A panelinha com o tempo se tornou uma Dema, uma maneira de estar mais perto dela. Tenho depois de 21 anos de casada, mais fôrmas de fazer pizza, mas quando falo “a da Dema”, todos sabem qual é. O valor de um objeto se torna absoluto com memória.
Pois as couves me lembram as galinhas que criei durante alguns pares de anos em Florianópolis. Tudo começou numa viagem a Santa Rosa de Lima. Ficamos numa pousada e lá, numa conversa com Dida e um casal de amigos que estava hospedado na casa ao lado da nossa, surgiu a possibilidade de comprarmos galinhas. Nossa família, como a do outro casal, vivia numa casa com quintal; era preciso cortar grama com máquina, manter minimamente baixo o capim, mas no verão isso era uma tarefa árdua e que exigia uso de eletricidade. As galinhas, além de cortarem grama de graça, constantemente e sem eletricidade, ainda poderiam comer os restos orgânicos, mais algum milho e assim seriam galinhas de botar bons ovos de gema alaranjada. E se tivesse um galo para cobri-las, além de bons ovos seriam galinhas sexualmente ativas, poderiam colocar ovos galados, que dizem as entendidas doceiras, são os melhores.
Galinhas poderiam ainda produzir adubo para a pequena horta. Que animal superior, todos esses serviços levando muito pouco do nosso bolso. Nunca adoeceram, nunca tomaram remédios, vermífugos, eram muito obviamente saudáveis e possuíam um incrível poder de causar relaxamento em seus observadores. As galinhas são encantadoras, estão sempre se movendo, nos hipnotizam com seus movimentos rápidos de pescoço, os olhos atentos, as penas brilhosas, coloridas. Essas aves gigantes que voam baixo e ficam pastando perto de nós, são mesmo os mais incríveis e úteis animais domesticados.
Foi uma folia e tanto para a criançada, três filhos do casal de amigos e três nossos, a escolha das galinhas e dos galos. Ficamos com 3 galinhas e um galo, eles com 4 galinhas e um galo numa repartição sem competição. Levamos um longo pedaço da tarde observando seus rostos, olhos, movimentos e cacacaregagens a fim de apelidá-los. Ficamos com Wanda, Luisa, Mimosa e o galo Machão. Adaptaram-se muito bem ao nosso saboroso pátio repleto de ervas daninhas, sementes, folhas variadas e minhocas. Nada bobos os galináceos logo descobriram onde estava o portão da horta, ficavam de olho num visitante desavisado. Algumas vezes trabalhei com eles ali dentro, mas de maneira geral aquele não foi um território liberado diretamente. Em compensação todo o resto que sobrava do que comíamos voltava voando da bacia, espalhando-se pelo chão, enquanto cacarejavam felizes atropelando-se para chegar primeiro. Menos Mimosa, ela ficava sempre mais atrás, como se tivesse certeza que chegaria uma comida perto dela. Desconfio que tenha tido uma relação psicótica com Mimosa, mas o galo Machão era mandão mesmo e eu nunca tive nada a ver com isso. Sempre se metia no meio das cacarecagens das galinhas impondo sua presença. Ele era mais alto, as pernas muito fortes e longas, cada pé gigante que dava medo nas bebezinhas humanas de um ano. Os galos eram bem grandes perto delas, verdadeiros dinossauros, mas já naquele dia em que batizamos os galináceos, as pequenas descobriram como enfrentá-los, elevando os bracinhos para que eles se afastassem. Talvez tenham apenas imitado as crianças maiores ou teria sido instinto, intuição, como saber?
Naquela época eu gostava de cozinhar diariamente comida limpa para celebrar o nascimento e primeiros anos da caçula. Tenho essa mania, de achar que os bebês não devem comer comidas que passaram por agrotóxicos, máquinas, maus-tratos. Que doida, falta-me inocência, vivo pensando mal das máquinas, mas idolatro a minha panificadora que todo dia, quase que milagrosamente, solta um pãozinho quente na mesa do café da manhã. Ela é quase uma galinha botando ovo. Aliás, galinha botando ovo é de ar inveja à militância do parto humanizado. Todo dia sai um ovo sem esforço, sem dor e todas elas comemoram. É escutar cacarejança fora da hora de dar comida, certo que mais um ovo chegou à nação das galináceas! Os galos nem ligam, não participam do evento, ficam lá se achando, dormem no pau e amanhecem cantando.
Ops, preciso voltar à cozinha e acabar de lavar as couves, cujos tristes restos vão parar na coleta seletiva da cidade e serão ignorados, por serem orgânicos. Parei de cozinhar justo porque precisava desabafar a saudade das galinhas diante dos restos de couve que têm destino tão menos nobre na minha vida agora. Muitos anos se passaram, aquele quintal -- que durante a estadia de Wanda, Luisa, Mimosa e Machão, ainda abrigou a coelha Inhacó e sua colega Buda Andréa, viu crescer o gato Lobo, sua irmã Tim e a tartaruga Luga; recebeu no solo nu também o corpo cansado de Babu, o enorme cão que atendia pedidos de com licença e morreu bem velhinho depois de ter morado conosco em três estados diferentes – não existe mais, aquele pátio também mudou. O senhorio da casa achou que podia ganhar muito mais se derrubasse o pé de louro, o pé de fruta-do-conde, destruísse de vez a horta e exterminasse para sempre com a linda figueira para construir apartamentos de aluguel. Foi um projeto de sucesso. A casa sem aquele quintal foi até mais valorizada só com a piscina e o jardim limpinho de cimento e flores contemplado com o lindo mini-varal branco, elegantemente esquecido no corredor ao lado. O terreno rendeu alguns pares de apartamentos pequenos e segundo o dono na época era um novo conceito em projeto para quem possui imóvel perto da universidade. E assim foi uma parte da história de vida microecológica migrando para microcapitalista no quintal daquela casa. Sem mágoas, é claro, e como a panelinha; o melhor vai para dentro e a tristeza se dissipa com os bons agouros das novidades.
Oh memórias, me larguem, preciso fatiar a couve, temperar o feijão e refogar a abóbora na panelinha; Dema eu.
Rs... não pude deixar de rir, imaginando você contemplando as galinhas a ciscarem, tal como faço aqui no meu quintal.
ResponderExcluirE a partir de hoje, toda vez que escutar as galinhas cacarejando, sem ser hora da comida, vou me lembrar que lá seu foi mais um parto, sem dor, feliz! Rs.
Poxa, me deu mesmo vontade de ter um quintal com galinhas... Minha sogra tentou, mas disse que elas são barulhentas e sujam tudo, além de fazerem uma bagunça danada e fugir pra casa do vizinho. Mas depois do teu texto acho que até eu faria uma tentativa, hahahaha
ResponderExcluirlindo texto: sabedorias e sentimentos!
ResponderExcluirobrigada por compartilhar este pedaço íntimo...
beijos muitos
Lembrei das galinaceas que fizeram parte da minha infancia, hoje da minha estoria e lembrancas de famlia... saudosismo gostoso. Tenho que lembrar de contar a pequena :)
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