Minha avó materna completa hoje 101 anos. Nasceu Aurora em 21 de dezembro de 1909, contou-me em 2008, aos 99, muito lúcida, que quando conheceu meu avô trajava um vestido amarelo e se recusou a dançar com qualquer outro moço por estar enamorada do rapaz que tocava violino naquela festa do CTG. Ele também enamorou-se e numa folga do baile foi conversar com ela demonstrando suas sérias intenções. Contou-me no mesmo dia que vive um sonho repetido em que ele chega a cavalo e a convida para subir na garupa; ela se aproxima e antes de montar, o cavalo sai em disparada. Ainda lúcida, com lapsos de memória recente, mais do que normais para a idade, mas lembranças muito nítidas da juventude, da infância e das coisas boas da vida. Não gosta de falar de coisas ruins, nunca gostou, sempre foi uma pessoa positiva a Dona Aurora. Quando mais nova, ali pelos seus 60 anos, lembro de assisti-la reprimindo as pessoas que se referissem aos outros como pobrezinhos, coitadinhos. “Diga riquinho, sempre diga riquinho, se machucou, se está chorando, diga riquinho, não fale pobrezinho”. Nasceu na fazenda do pai, mas acabou sendo criada por um padrasto e pela mãe, após a morte do pai. Quando casou com meu avô herdou sua parte em terras e foi com ele tocar a Sociedade, fazenda que meu avô comprara junto com os irmãos. Na antiga sede, de piso de madeira e altos janelões, criaram os três filhos, que em idade escolar precisaram entrar em internatos na maior cidade da região, Santa Maria. Nas férias ela buscava as crianças na estação de trem numa charrete. Perguntei um dia se essa viagem, que cansei de fazer tão bem acomodada em carros várias vezes, não era penosa, num banco duro de charrete. “Não, às vezes chovia e não era bom sentir frio e os pingos da chuva no rosto, mas eu ia buscar meus filhos, ia feliz, só pensava em reencontrá-los.”
Um dia chegou pelo rádio a notícia de que minha mãe, aos 13 anos, estava hospitalizada por uma crise de apendicite. Ela conta: “Eu não levei roupa alguma, cheguei em Alegrete e entrei no primeiro trem para Santa Maria, nem escova de dentes peguei, só queria estar lá com ela.” Em Santa Maria comprou o que precisava depois de passar uma noite e ver que a filha Marta estava bem. Minha avó nunca foi mulher de queixar-se ou expressar maus ou bons sentimentos, sempre foi prática, das providências. Uma política, embora nunca tenha se candidatado ou assumido qualquer cargo público, passou a vida envolvida com política; foi grande apoiadora do famoso padre que largou a batina para virar prefeito em Alegrete. Nunca acreditou em Natal, na época de final de ano estava sempre muito ocupada com as lidas da fazenda, comprava um saco de balas para cada neto e fim. Presenteava quem queria, quem achava que estava precisando mais no momento e esse momento nada tinha a ver com datas. Me deu um anel de ouro com brilhantes aos 16 anos e mandou um bom dinheiro quando me estabelecia em São Paulo; foi suficiente para comprar a vista uma máquina de lavar roupas e um aparelho de som. Ela gostava de dar cheques, um dinheirinho extra, era seu jeito de demonstrar sentimentos. Não é de beijos, abraços ou palavras doces, nunca foi, mas isso nunca quis dizer desamor. Por ter sido criada longe dela, mantínhamos uma relação especial; eu não me sentia totalmente íntima, nunca a critiquei, nem teimei, eu era a que obedecia, a que nunca pedia nada e não fazia malcriações. Sentada passando amendocrem numa fatia de pão para minhas primas Sandra e Elcy e para mim, em sua casa em Alegrete, ela perguntou o que queríamos que ela nos deixasse no dia em que morresse. Minhas primas, mais espontâneas pela intimidade de viverem perto dela, falaram algumas coisas que crianças falam nessas horas, não lembro o que disseram. Eu corei, não sabia o que pedir. Ela então definiu: “para ti, Cláudia, vou deixar o relógio cuco, porque tu és a que mais gosta desse relógio” Gostava muito mesmo, desde pequena eu chegava e pedia para ela fazê-lo cucar. Ela ia lá e dava um jeito só para eu ver, desregulava a hora só para me contentar. Algumas vezes dizia para eu esperar que já ia acontecer e então eu ficava lá debruçada sobre o sofá de veludo amarelo e achava muito chato quando ele só cucava uma ou duas vezes porque nem dava tempo de observar. O tempo passou, fui ao mundo, me perdi, me achei em novas querências, nunca mais voltei, mas ela nunca esqueceu. Um dia, já faz uns 10 anos, minha mãe apareceu com uma caixa e disse: “ tua avó mandou para ti, disse que te prometeu, está aqui o cuco dela, coitada, está quebrado, mas ela fez questão e como tu gostas dessas velharias, aqui está”. Abrimos a caixa, o cuco todo empoeirado, mofado e enferrujado não funcionava. No centro de Florianópolis, onde eu vivia na época, havia um senhor relojoeiro que faria o concerto. Ficou perfeito, só para de funcionar se pegar vento. Ainda não tenho netos ou netas, mas já está decidido, o cuco, que era da avó da minha avó, irá para as mãos da criança que se encantar por ele. Hoje entendo e dou graças a esse entendimento, que ser a favorita neta ou a favorita filha não é o que importa; ser favorito nas famílias às vezes é só contingência dos acontecimentos e das necessidades que algumas pessoas têm mais de ficarem no colo, na mesma casa, na mesma cidade, no entorno de suas raízes. Os solitários, inadequados, aventureiros, todos são riquinhos, cada um de maneira especial.
Feliz aniversário, vó Aurora! Estou aqui na máquina, mas a alma está aí contigo nos festejos de Alegrete, a nossa cidade natal.
Cláudia
Lindo!
ResponderExcluirNao sei se quero chegar a essa idade mas adoro conversar com qualquer pessoa que tenha passado dos 80, alguns austeros, é verdade, mas todos com sabedoria e lembranças de um tempo que nao conheci, mas que sinto estranha nostalgia.....muito bom! Felicidades para a Dona Aurora....
Nossa que relato lindo de uma vida que gerou outras tantas. Que lindo ver assim expostas as suas entranhas mais íntimas de maneira tão leve, tão sutil. Parabéns pra sua vovó, afinal não é todo dia que se chega a essa idade tão cheia de lucidez! Parabéns pela força feminina de sua família.
ResponderExcluirBeijos
Eve