terça-feira, 17 de julho de 2012

Funções e disfunções da raiva na peste emocional

Cláudia Rodrigues
Na oficina Inscrições Corporais em Salvador, 15 de julho último, uma pergunta ótima, que respondi na hora, mas é boa demais para boiar por aí apenas oralmente.
A pergunta ocorreu após teoria e dinâmica sobre comportamento infantil e reações de adultos cuidadores de crianças entre 2 e 4 anos, que com frequência ligam-se aos pais pelo sentimento da raiva. As crianças sentem raiva, os adultos respondem com raiva e em alguns casos de peste emocional mais grave surgem agressões verbais ou físicas, ameaças ou castigos.
Vamos ao questionamento, que foi mais ou menos assim: “Cláudia, se nos faz mal engolir a raiva, se o saudável é expressá-la, então como administrar o que estamos sentindo? Devemos expressar ou não? Como isso deve ser feito?”
A raiva é um sentimento humano saudável que deve ser tolerado na criança. Apenas com a expressão de sua raiva ela se acalma e volta a autorregulação. Alexander Lowen, um dos neo-reichianos mais reconhecidos, desenvolveu uma excelente técnica de expressão da raiva: auxiliar a criança com ataque de raiva a espernear em um colchão macio. Ela pode ainda bater os braços e sacudir a cabeça, vocalizar como quiser até cansar e se acalmar. Isso funciona em casa, mas mesmo em um ambiente sem colchão, o adulto pode improvisar uma proteção para a cabeça e deixar a criança se expressar. As crianças naturalmente tendem a buscar a autorregulação por meio da raiva dessa forma. Após a expressão da raiva a criança costuma apresentar um ótimo reequilíbrio e não é necessário satisfazer alguma vontade absurda dela, o que ela precisava era apenas ter o direito de expressar o seu sentimento de frustração, o seu descontentamento. Com o tempo a tendência da criança é aprender a conversar com os adultos, a irrigar-se naturalmente a cada negativa, identificando a sua raiva, respirando nela e aprendendo a lidar com pequenas frustrações. Isso vai garantir a ela um aporte cortical e orgástico que a acompanhará para o resto da vida. A criança reprimida em sua expressão vital, em sua pulsão pelo prazer, pode desenvolver uma personalidade excessivamente boazinha ou rebelde, mas terá boicotado parte importante de seu aporte orgástico. Permitir que a criança se expresse não quer dizer e nem deve ser atender a todas as demandas dela, não é mimá-la. Pelo contrário, os mimos constantemente atendem às vontades e não aos desejos da criança e dessa forma ela também tenderá a perder conexões importantes com as necessidades reais de prazer de seu próprio corpo.
É o caso, por exemplo, de uma criança de 4 anos que quer fazer traquinagens, correr e é mantida no colo com satisfações orais. Ela pode permanecer boazinha, quietinha, mas não está de fato conseguindo investir em suas pulsões naturais da idade.
Lowen recomendou o espernear diário também para adultos como meio preventivo de manutenção orgástica, mas Lowen não foi um sujeito que se pode identificar como politizado e ao contrário de Reich e de outros neo reichianos, preocupou-se pouco com o entendimento e aprofundamento do que Reich denominou como “Peste Emocional”. O termo é mesmo pouco palatável, mas fundamental para compreender a postura crítica política de Wilhelm Reich, que ainda hoje é atual, talvez mais compreensível agora porque aquilo que ele enxergou e previu, nesse momento da história do mundo salta aos olhos com um antigo exemplo que ele usou.
No indivíduo com peste emocional, os motivos da ação são sempre simulados. O motivo aparente nunca corresponde ao motivo real, seja esse consciente ou inconsciente. Nem o objetivo aparente corresponde ao objetivo real. No fascismo alemão, por exemplo, a “salvação e pacificação da nação alemã” foram o objetivo dado, ao passo que o objetivo real- baseado na estrutura de caráter- era a guerra imperialista, a subjugação do mundo, e nada mais do que isso.” Wilhelm Reich, em Análise do Caráter, pg 469, 2ª Ed. Mais do que perceber e interpretar a realidade política e a força do Estado, ele fez uma relação entre esse estado repressor e a inibição das pulsões naturais, que mina a saúde emocional das pessoas em sua base primordial: a sexualidade. “A maior parte daquilo que a psicologia oficial do adolescente considera como características da puberdade se revela no trabalho de análise do caráter, como efeito artificialmente produzido da sexualidade natural obstruída(...)A maioria das pessoas são realmente muito menos potentes do que imaginam em sonhos, e possuem muito mais qualidades e capacidades do que aquelas que traduzem em ação. Essa contradição grotesca na estrutura do homem moderno é uma das consequências da destrutiva regulação da sexualidade que lhe é imposta pela sociedade. Eliminar essa contradição é uma das tarefas mais importantes que terão de ser cumpridas por uma nova ordem social.” Wilhelm Reich, em Análise do Caráter, pg 301 2ª Ed. A raiva não é um sentimento ruim como aprendemos, não deve ser reprimida na infância, e, na vida adulta, quando não se dirige para a correção das relações, dos sistemas institucionais, dos grupos unidos por perversões e presos em comportamentos difamatórios, ela se volta contra o corpo de quem a expressa de maneira dissimulada ou pervertida. “Quando um jovem descobre que a inibição de seus empenhos sexuais naturais não é devida a considerações biológicas, não é ditada pela pulsão de morte, mas satisfaz interesses definidos daqueles que detêm o poder social; quando ele descobre que os pais e professores são meramente executores inconscientes desse poder social, então não adotará a posição de que se trata de uma teoria científica muito interessante. Compreenderá a miséria de sua vida sob uma nova luz, negará sua origem divina e começará a se rebelar contra os pais e seus superiores. Poderá até se tornar crítico, pela primeira vez, e começar a refletir sobre as coisas. É isso, apenas isso, que eu entendo por política sexual.” Wilhelm Reich em Análise do Caráter, pg 269 2ª Ed. A repressão ao nosso organismo vivo nos leva a desenvolver padrões e estratégias de sobrevivência baseadas em superficialidades e exibicionismos sociais que no fundo apenas mascaram o ódio por termos sido boicotados. O coquetismo feminino disfarça a mesma impotência orgástica do galanteio masculino exagerado. A raiva que não pôde ser expressa na infância, na vida adulta solta-se em piadas, falações sobre sexo, fofocas e difamações; surge como uma energia orgástica recalcada porque não consegue realizar-se na simplicidade sexual amorosa. Assim, finalizando a resposta, sugiro que procuremos ser mais agressivos socialmente, mais críticos e questionadores em relação aos grandes aparelhos repressores na vida adulta -- Estado, instituições, grupos de amigos. Podemos ainda ser raivosos contras as injustiças econômicas e sociais porque assim, com a raiva de adulto expressa contra a fonte da doença emocional de adultos, seremos levados naturalmente ao exercício da ternura com os indefesos, os bebês, a natureza e finalmente poderemos recuperar nossa capacidade orgástica nata. Quando obedecemos o Estado, as leis econômicas, os abusos das empresas privadas, quando nos submetemos a relações hipócritas em nome de supostas vantagens econômicas ou acomodamentos por incapacidade orgástica, descontamos nossa raiva recalcada no parceiro, nos filhos, nas nossas relações íntimas. Fugimos do contato verdadeiro e profundo que poderíamos usufruir com nossos maiores amores para substituir por simulações em convivências superficiais, submissas e exibicionistas. É hora de crescer, parar de reprimir e de bater nos pequenos; hora de angariar coragem para enfrentar os grandes monstros dentro e fora de nós.

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