sexta-feira, 7 de março de 2014

Somos escravas da Violência Obstétrica?




Cláudia Rodrigues

No rol do que se chama academicamente "Violência Obstétrica" estão vários procedimentos que viraram corriqueiros na classe médica e de enfermagem nos últimos 80 anos, talvez mais, nem todas as parteiras eram boazinhas. Há desde ares sádicos, enfermeiras rindo da mulher em contrações, perguntando se na hora de fazer não doeu, até manobras médicas famosas e também relatadas academicamente, como kristeller, quando se aperta a barriga da parturiente para forçar o bebê a descer. Há coisas piores e mais sangrentas, elas precisam deixar de acontecer, os profissionais necessitam atender sob as normas de segurança e cuidados básicos, sem qualquer traço de perversidade.

Agora, essa história macabra não nos atinge dessa forma e com esse grau de abusos porque fomos fortes, espertas, sensíveis e enfrentamos de frente o uso do nosso corpo pela medicina, pelo mercado da saúde em geral. É preciso de ter leis, fiscalizações, mas direitos se conquistam também de dentro para fora. Se a pessoa nem percebe que está sendo abusada, se não sabe o que dar e o que não dar ao próprio corpo, se não tem noção do quanto é capaz, se acredita ter um defeito, uma impossibilidade porque o médico diz que ela não vai conseguir parir e ela diz que gostaria mas fica com medo de não conseguir é porque ela acredita mais no que está fora dela. Esse é o primeiro passo em direção ao buraco cultural, repleto de pegadinhas e cascas de banana postas para a pessoa não mergulhar em si mesma.

E ela pode não querer, pode preferir não se envolver com isso, crer na cesariana como método mais fácil e seguro de nascer. Todos têm direito a ter suas crenças, isso não deve ser questionado. As informações não são absolutas, as crenças sim e precisamos saber quais são nossas e correr atrás delas. Um bom exemplo atualmente é a vacina contra o HPV, muito debatida, mas estamos em crenças, há pesquisas e denúncias favoráveis e contra a vacinação das meninas, porque é natural que seja assim na competição científica, mas nós, como cidadãos, temos que pensar sobre, ler os lados, o que há por trás dos lados e decidir. E isso é crença.



Por menos que as defensoras do parto natural e da amamentação- entre as quais me incluo- gostem, há pesquisas favoráveis à cesariana, há pesquisas que são contra a amamentação, há teses, filosofias, um vasto mundo de opiniões. Agora, se o objetivo é diminuir o machismo, promover o parto natural, derrotar a violência obstétrica, aumentar o tempo de amamentação e diminuir o índice de cesarianas, então é preciso que cada uma das mulheres entenda a própria história enquanto faz história. Ou vai dar problema ali na frente de novo. Que nem os sutiãs queimados, que viraram "direito" a seios de silicone, seios retesados, reduzidos, enfim seios para atender o mercado de seios padronizados.  Chega a ser cômico imaginar que na década de 1980 a moda era ter seios pequenos, assim que quase todas as mocinhas da época e algumas velhotas também, diminuíram o tamanho de seus seios. Trinta anos depois a moda é o oposto. E achamos isso tudo normal, seguimos tendências, compramos o corpo que nos vendem, o nosso próprio corpo, é um aqui se faz aqui se paga.

É nessas que quando uma jovem balzaquiana engravida e romanticamente se imagina parindo, leva um susto sensorial ao receber a notícia do médico de que ela não será capaz de parir. Algumas vão pirando até o final, ficam inseguras, são dominadas pela fantasia, natural em 9 entre 10 gestantes, de que o bebê pode morrer e então escolhem confiar cegamente na decisão arbitrária de que a criança estará mais segura com cirurgia agendada. É uma sonseira de autoconhecimento, a pessoa não se enxerga, não se entende, acha que o outro deve formatá-la porque estudou para isso e assim esquece que parir é um verbo que não pode pertencer a outra pessoa que não aquela que está ali, com o bebê na barriga, o filho que ela alimenta, que nela foi fecundado. Esse não saber sobre o próprio corpo nos pertence.

Diante de um profissional que declara em uma primeira consulta que a mulher é incapaz de parir, até mesmo uma candidata de carteirinha a passar pela cesariana tem o direito de questionar tal saber. Por ser um ser pensante, apenas.

É preciso perguntar e avaliar o profissional. Ele tem o saber dele, as crenças dele, é uma pessoa, tem um histórico familiar próprio, a vida dele tem a ver para ele, mas o que sabe esse médico da vida de cada cl
iente?
Em uma hora de consulta, às vezes menos, uma pessoa, por mais que tenha estudado sabe que tipo de coisas sobre esse corpo, fantasias, história genética, familiar, psíquica?

E sobre esse corpo sabe o que vê superficialmente, uma altura, um peso, uma aparência. É justamente o lugar da interferência e bem sobre ele surge um diagnóstico, sendo uma opinião contra a saúde da pessoa?

E aí é hora de pensar e sentir a própria história, uma mulher precisa saber de si mesma, não só para parir, é essencial, até para lidar de frente e melhor com um eventual não parir.Para tudo é melhor saber de si mesma, de verdade, de dentro para fora.

Para barrar a violência obstétrica e abaixar os índices de cesariana de maneira efetiva é necessário que cada "formiguinha" entre em contato com o seu eu no trajeto.

A ansiedade no que está fora, o hospital, a banheira, a água, a não água, o kristeller, o períneo, a episiotomia, nada disso pode tirar o centramento, a confiança e apuração dos sentidos em relação ao corpo e os sentimentos que produz.

Os chineses costumam dizer que a inteligência está na barriga. É porque é nas vísceras que nascem os sentimentos. Sentir é a forma mais eficaz de se conhecer algo profundamente.


Para efetivar políticas públicas que funcionem, para que leis sejam cumpridas, para que direitos passem a ser adquiridos, é necessário que o interno de cada mulher seja acessado por ela mesma.

Somos donas de nossos corpos, o fato de termos entregado-o para o mercado, para o machismo, para a vaidade em série, não deve ser relegado a um segundo plano. É o primeiro plano, essa é a situação. Herdamos, cultivamos e cultuamos isso e parto não é algo que se possa realmente ter se estamos despejadas sobre o que está fora, se ansiamos em vez de parir a criança, fugir disso buscando soluções externas, querendo estar desesperadamente fora do corpo em trabalho de parto. Nem parto nem coisa alguma em direitos.

O desespero, a aflição das mulheres, o medo dessa experiência se tornou descomunal e todos sabemos que a posição de vítima sempre possibilitou atendimento de opressores. Sádico e masoquista.

Ok, que se cortem as asinhas dos sádicos, mas elas crescerão novamente se as mulheres não saírem da vitimização.

Quem trata o outro como senhor de escravos, escravo será. 




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