quinta-feira, 21 de agosto de 2014

Você pensa que toca o sagrado?

Keretxu Miri em desenho feito por Gaia Hasse a partir de uma foto, em 2012
Cláudia Rodrigues  

A relação do ser humano com o sagrado é muito antiga. Dessa ligação humana com as coisas, sentimentos e atitudes inexplicáveis, nasceram as religiões, cultos, veneração a deuses e crenças, muitas crenças, muita imaginação. Não tenho dúvidas que o sagrado existe, mas ele não pode ser tocado, muito menos seguido, perseguido e vira um mal desnecessário quando serve para culpabilizar e impedir os prazeres humanos, sejam eles carnais ou espirituais. Sim, atrás de uma simples taça de vinho, pode haver um sagrado pensamento, por mais banal  e luxurioso que seja o ato de sorver uma taça de vinho.

Descobri isso conversando com a pajé e parteira da tribo Tekoa Porã, Keretxu Miri, durante uma entrevista sobre partos. Muito lúcida, foi extremamente transparente na entrevista http://pib.socioambiental.org/anexos/7144_20091202_105857.pdfhttp://pib.socioambiental.org/anexos/7144_20091202_105857.pdf mas em um dado momento, quase se arrependeu de citar o "getapaurã", instrumento de madeira, semelhante a uma tesoura, que é usado para cortar o cordão umbilical do bebê. Muito educadamente explicou que o "getapaurã" é sagrado e no sagrado não se toca.

Para ela, até a decisão de uma jovem da tribo de ir para o hospital do homem branco, em vez de parir com ela, era uma decisão sagrada. O sagrado, segundo Keretxu, nunca está no pensamento, não é fruto da imaginação, mas dos sentimentos e cada pessoa tem o seu sagrado. Lá pelas tantas, quando ela me relatou sobre ser sagrada a morte de animais, que depois de serem comidos tinham suas peles e dentes transformadas em adornos, como reverência e uma certa imortalidade, tanto quanto ser sagrado o ato de colher umas folhas de chá e sua intenção na hora da colheita, acabei juntando, talvez confundindo, o sagrado com o amor e o prazer genuíno dos nossos atos. Fui para casa conversando com a minha companheirinha mirim, a menina Gaia, então com 6 anos, sobre nossas aventuras quinzenais na tribo. Parecia um vício, sempre retornávamos. Não havia tanta coisa para fazer lá, ela ficava solta com os amigos, um dia a maior alegria era subir e descer sobre a montanha de farinha de mandioca, em outro era colher palmitos na mata, aprendendo que palmito estava maduro, que palmito ainda não poderia ser colhido, podia ser também um fazer nada, andar ao léo, brincar de arco e flecha ou com os instrumentos musicais, enquanto os adultos conversavam, mas era sempre uma espécie de vício, não se passava um mês sem uma saudade e um ter que voltar.

Aquilo tão simples, tão normal, era um pouco do sagrado ou mexia com o sagrado em nós. Havia regras, mistérios, lugares que não podíamos ir, coisas que não podíamos tocar ou ver. No sagrado não se toca, no máximo podemos sentir, mas ele foge de nós em segundos. O sagrado é a perfeição de um momento, o momento não dura mais do que alguns segundos. O desespero humano, entretanto, tenta reter o sagrado, compreendê-lo, esmiuçar e criar regras a fim de não deixar que ele escape e é aí mesmo que tudo se vai pelos ares. O sagrado é como o rio que corre, não se pode pegar a água do rio, aquela água visualizada a ser tomada com as mãos no rio, acabou de passar, já estamos na próxima água e ela já não está mais lá. Muito espertos, inventamos a represa ou o copo, mas neles a água não corre e se não corre, é apenas água que mata a sede e hidrata o corpo, mas sagrada só mesmo a água do rio, correndo no rio, do rio para o mar.

Um dos sintomas dessa perseguição ao sagrado hoje em dia, se refugia nos dogmas de um espiritual separado do corpo, nosso rio de águas em  movimentos constantes, nosso único rio sagrado. Nós o desprezamos, queremos soluções mágicas e para isso usamos a imaginação como sendo a suprema fonte do sagrado e caímos em culpa, represamos nosso rio interno enchendo-o de pensamentos mágicos persecutórios. Fantasiar com penitências a serem pagas é deixar de sentir prazer, é como encher um rio com sacolas plásticas, é poluir nossas águas internas, só para fingir que sabemos o que estamos fazendo.



Fico triste quando vejo uma jovem mãe achando que perdeu ou não encontrou a mulher sagrada em seu corpo porque não pariu ou porque não amamentou. O sagrado feminino não se encerra no parto e nem na amamentação, o sagrado não é coisa alguma quando visa doutrinar. O que é sagrado está livre de culpa, é livre para o prazer. Pode ser que haja uma vida espiritual e sem corpo depois da morte, posto que depois da morte corpo não há, mas o sagrado aqui na terra, o sagrado de corpo vivo, se mora em algum lugar, não é na culpa e na impossibilidade de prazeres. Ok, parto é prazer, não tenho dúvidas disso, mas é também o olhar contemplativo para o recém-nascido; as águas do nascimento correm rio abaixo para o próximo momento. Já foram, já passaram. Se pode pensar sobre elas com o cérebro, com reflexões, mas temos que deixar o rio correr em vida porque ele corre inexoravelmente para a morte e o nascimento de alguém mata o momento do parto para que nasçam outros momentos.

A morte até pode ser um estado de espiritualidade sem corpo, pode ser que seja apenas o fim dos fins, sem nada mais, mas o conceito de que estamos sendo punidos porque não pegamos tais milímetros de água enquanto o rio corria, é fugir de um estado de vitalidade pulsante para um estado de letargia imaginativa.

Isso é muito comum em religiões. Em algumas, a explicação de uma cesariana ou de um filho com uma doença grave, até mesmo a morte de um ente querido, é usada de maneira a resignar a pessoa a um lugar de menos prazer. "ah , isso foi de uma vida passada, um karma", ou seja, a pessoa tem que arcar com uma culpa medonha a partir de um imaginário obviamente criado por uma mente humana, em vida.

O sagrado começa a vir cheio de doutrinas e explicações que fogem completamente da única luta sagrada que podemos desfrutar, que é o prazer. Investe-se em melancolia como uma promessa de passagem para uma vida melhor, sabe-se lá em que milênio do futuro. O presente, mal vivido historicamente, politicamente, ambientalmente, o presente das relações de afeto acaba comprometido, paralisado entre um passado e um futuro imaginário.


A vida, tal como conhecemos, a que nos é dada aqui nesse terreno de ar, começa no nascimento. Lentamente vamos tomando consciência do mundo, de tudo que está fora, nos desenvolvemos pelo prazer, vamos adquirindo consciência sobre nossos sentimentos, nossos corpos e finalmente, adultos, passamos a temer a morte, o rio que corre para o fim. O conflito de saber que somos finitos muitas vezes nós faz morrer antes da hora, um pouco a cada dia. As fugas são muitas, variam entre shoppings e cultos mil e no fundo toda a parafernália cultural nos promete o troféu que nunca virá, da vida eterna. Ansiosos pelo porvir, lacrimosos pelo que passou, morremos aqui e agora.

Entre mil e umas maneiras de comer e amar, pensar e fazer, vamos nos desconectando do sentir, o único sagrado que temos aqui, vamos nos segurando em formas e fôrmas competitivas e apressadas, mesmo quando a lei do nosso culto, da nossa crença, é para sermos lentos. Não tem saída, não há centenas de deuses, mas bilhões deles, o supremo é o louco que nos habita e ele nunca deve ser seguido. A descomunhão não se dá por excesso de deuses, mas por excesso de ovelhas. Sobra paixão pelo que está fora e falta amor para o que está dentro. Não aguentamos ver o rio passar, queremos que ele passe a nossa maneira.


Aprender a ver, cheirar, ouvir, sentir e deixar correr o nosso rio interno é uma tarefa mais árdua quando partimos de pressupostos imaginários, de crenças que nos foram impostas, de saídas estratégicas que criamos para sobreviver. Os filtros da família, do mundo, da cultura, do conhecimento, têm um papel importante para nos fazer sair dessas zonas de (des)conforto. Podemos e devemos receber as sementes dos outros em nós, mas se o outro é pântano e eu sou deserto, há sementes que não vão vingar, mas não é por isso que a via sacra do deserto vai ser menos bela que a via sacra do pântano ou da floresta, da selva ou do cerrado, da caatinga, da montanha ou da mata da praia. A via sacra é o sagrado de cada um. Ainda que seja apenas um jardim ornamental, que seja o mais vicejante que pode ser.

Temos uma natureza gigantesca, exuberante e ao mesmo tempo extremamente simples que reflete o melhor de nós aqui mesmo, ao alcance dos nossos olhos, mas nos deixamos levar pela ganância de dominá-la, compreendê-la mais do que senti-la em nossos corpos.




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