quarta-feira, 9 de junho de 2010

Parir e partejar, arte de união alegre

Por Cláudia Rodrigues

Para Irene

Muitos acham que parir dentro d´água é modismo. Não é. Esse elemento, assim como massagens, conversas, alegrias, um ir levando a mulher a aceitar a transformação, o grande fenômeno fisiológico que transforma uma pessoa em duas, é usado para relaxar as intensas sensações das contrações, que alguns chamam de dores do parto. As famosas dores do parto podem durar horas, às vezes dias e só passam com a expulsão do bebê ou via cirurgia.
Hoje é comum, antagonicamente ao movimento das águas e das alegres bênçãos humanistas, a cesariana eletiva, marcada com antecedência e sem nenhuma indicação médica: ela evita que médicos e parturientes passem pelas dores do parto, que sempre mexem com as águas internas, nosso universo de sentimentos profundos, nem todos bons.
Curiosamente os partos migraram em massa para os hospitais no início do século passado para salvar as mulheres das “parteiras más” e com isso as boas parteiras, as bondosas senhoras que acalmavam as mulheres e acalentavam as famílias em seus medos de perder um descendente também foram banidas, excluídas do universo dos partos. Nos hospitais os maus-tratos, a falta de paciência, a impessoalidade da linha de montagem e a pressa da assistência tornou o nascimento natural uma tortura ou no mínimo estabeleceu como normal uma relação sadomasoquista entre assistentes e parturientes.
E o parto, por seu tempo tradicionalmente longo, embora não seja regra absoluta; por sua delicadeza, por ser um fenômeno imprevisível e de maior transformação que o corpo de um ser humano pode sofrer naturalmente; por ter uma ligação direta com o universo psíquico feminino, talvez nunca perca alguma estreita ligação com o drama sadomasoquista, seja nos hospitais, nas maternidades chiques ou em casa.
No parto se pode matar ou morrer. Na cirurgia também, na cirurgia os riscos são ainda maiores segundo as evidências, mas a cirurgia tem uma vantagem que o parto não tem: ela salva de fora para dentro e salva rapidamente, resolve o impasse, a dor, o desespero, a apatia, o cansaço e o pânico em minutos. Ela alivia a agonia da espera e da dúvida mesmo quando não salva e nunca é vilã quando mata. Não há luta de almas, os papéis estão muito bem definidos. De qualquer maneira não há parturiente civilizada no mundo que não imagine, depois de muitas horas de TP, se o bebê está realmente bem.
No parto, na assistência ao parto, há pouco o que se pode fazer a não ser acalmar e alegrar, animar a parturiente, que vive ali um dos momentos de maior fragilidade psíquica X potência corporal possível nessa vida. A alegria é um elemento fundamental, uma parteira alegre transmite confiança, uma parturiente confiante consegue alegrar-se entre uma contração e outra e vão levando, vão levando...
Na Dinamarca o atendimento ao parto pode ser feito em casa e para salvaguardar a paciência e a disposição das parteiras, não há parteira exclusiva, elas trabalham por turnos acompanhando o desenrolar do trabalho de parto até o momento final, de êxtase, o prazer total que vem da expulsão.
No Brasil temos poucas parteiras, a maior parte delas tem formação no sistema clássico da medicina tecnicista, intervencionista e trabalham sozinhas ou no máximo com doulas. Quando um bebê demora 12 horas para nascer é beleza, mas e se o bebê demorar 24 horas? Sim, um bebê pode demorar 24 horas para nascer, pode demorar 36, 48 horas e ainda assim ser capaz de nascer saudável. Uma mulher pode ter uma dilatação lentíssima, no meio do caminho pode aparecer um rebordo, uma dificuldade de encaixe...E ainda assim seria preciso amar essa parturiente, alegrá-la e acalmá-la, mas às vezes é sobrehumano amar, às vezes é sobrehumano confiar e parir e também pode ser sobrehumano partejar alegremente.
E se for sobrehumano e dessa dor intransponível nascer um bebê saudável, vigoroso, capaz de mamar, então vamos apenas amar e por um minuto lembrar que a preciosidade de uma vida novinha em folha, perfeita em suas mais que admiráveis imperfeições é incomparável e qualquer hipótese do que poderia ter sido feito por outros é só mais uma falta de alegria desnecessária.
O aprendizado, de qualquer maneira, vem de dentro para fora, das nossas próprias dores pessoais ou profissionais, da expansão de nossa capacidade de amar e fazer melhor e não do nosso olhar sobre as inadequações alheias. Ontem, hoje, amanhã e sempre.

5 comentários:

  1. Maravilhoso texto!
    A analogia da pessoa que se transforma em duas, ahhhhhh se a maioria das mulheres soubessem disso...

    O foco na energia da equipe, penso que esse é um assunto pouquissimo discutido.
    Para mim, duas coisas fizeram grande diferença no meu parto a ponto de me re-centrar: a alegria do meu marido e a minha obstetra sentada no chão, tranquila.

    A alegria que vinha de fora, me resgatava do pânico que vinha de dentro....

    beijos
    Renata e Samuel

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  2. Mais um texto lindo sobre parto. Inspirador.

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  3. "às vezes é sobrehumano amar"


    lindo! todo o texto.

    beijos,
    ci

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  4. muito obrigado pelo incrivel texto,
    nao sei pq mas nao consegui evitar o choro!
    bjs de BSB!

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  5. Lindo demais esse texto. Ótima percepção da condição humana diante da vida e mais: das nossas fraquezas e capacidade de reconhecê-las e se reinventar. Beijo!

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