sábado, 19 de novembro de 2011

Inadequação

Cláudia Rodrigues

Você está numa festa, conhece poucas pessoas e sabe que os viventes ali se conhecem há muitos anos. Entra pisando em ovos, mas é bem-vinda, foi convidada e não tarda para a anfitriã colocá-la em um grupo, que a recebe amavelmente, com sorrisos e beijinhos brasileiros. O assunto estava animado e o grupo de simpáticas mulheres logo o introduz a você. Elas falam sobre as maravilhas da cesariana e do quanto é chata essa moda do parto normal, essa ignorância da mulher ser rasgada como no tempo das cavernas. Uma das integrantes do grupo, muito enfática diz: “Vivi as duas experiências, o primeiro foi normal, um horror, não conseguia sentar por dias, o segundo foi cesárea, uma maravilha, no dia seguinte estava em pé fazendo tudo, com muito leite, me senti ótima, realmente não compreendo como as pessoas podem querer retroceder, voltar a Era da Pedra e passar a vida com a bexiga caída!”

Você dá um golão na bebida que te ofereceram e que você nem consegue identificar o que é, tamanho seu desconforto. Você não é uma cínica, você não vai poder concordar, mas pow, por mil outros motivos você pertence a esse grupo nesse momento de sua vida. Não dá para não se sentir o azarão da vez. Tem a impressão que puxa, que certas coisas só acontecem com você! De vários pequenos grupos foi cair exatamente nesse, que aborda justamente esse assunto, um dos seus assuntos favoritos, só que em opinião contrária e tão contrária que fica inabordável, você está mergulhada num poço fundo, não há cordas, as paredes são lisas e uma quadrinha em coro infantil martela na sua cabeça: o buraco é fundo, acabou-se o mundo, o buraco é fundo, acabou-se o mundo! Então enfia uma mecha de cabelo atrás da orelha, dá mais um gole, agora sabe o que tem no copo, é algum tipo de espumante, é até bom para alguém como você, que não curte espumante. Começa a torcida interna para que o grupo mude de assunto e você faz uma reza interna, clama aos céus por qualquer outro tema, imagina que mesmo um assunto como tintura para cabelos, ainda que mantenha os seus branquelos com orgulho, será mais digerível, afinal você já decorou o nome de algumas tintas e já sabe que Henna tem chumbo. Se falarem de esmaltes, ainda que não use, você lembrará que comprou um para sua filha naquela viagem ao Uruguai, é da Revlon e tem uma durabilidade ótima, você se viraria até que bem por uns 80 segundos em conversas de salão, mas a prosa não muda e outra integrante do grupo discorre sobre o sucesso das suas quatro cesáreas e da ligadura de trompas, afinal o médico havia garantido que depois da quarta cirurgia era arriscado demais ter outro bebê, então ela uniu o útil ao agradável. Hahahaha, todas riem felizes, você ri de nervosa. Uma terceira figura entra em ação e fala que uma das vantagens da cesariana é justamente essa, que uma amiga teve o terceiro filho de parto normal e precisou voltar alguns meses depois para ligar. A quarta integrante do grupo exclama: “Nossa, passar por todo o horror do parto e ainda ter que voltar para ligar as trompas!”

Quando você estava quase relaxada aprendendo a fazer cara de paisagem em meio a uma torcida interna para a troca de assunto, ainda que fosse espinhoso, mas que não fosse tão espinhoso, quando estava se superando na arte de praticar a sociabilidade sem falar feito uma matraca, o que é algo dificílimo para você, quando você estava lá mais pairando do que vivendo de fato a inusitada situação social; os quatro rostos, os oito olhos pousaram sobre você.

Moisés não falava porque era uma estátua, mas você era uma estátua viva que precisava falar. Poderia sair correndo para o banheiro, pensou em fazê-lo, mas isso seria tão mais cínico do que fazer média, não havia mais saída, apenas lembrou de um quadrinho da Mafalda: Por que justo a mim coube ser eu mesma? Por que justo a mim coube ser eu mesma?

Não havia mesmo jeito, caberia a você ser você mesma. Entendia que o parto normal tradicional poderia ser violento, aquela coisa das pernas amarradas, do corte no períneo, mas que esses novos partos não eram um retrocesso, mas um avanço da medicina, o nome que se dá ao novo parto é humanizado, sem intervenções desnecessárias. Você falou de um filme singelo que fez com uma dupla de amigos sobre uma médica que faz um trabalho lindo no interior da Paraíba, um verdadeiro atendimento de luxo humano às mulheres do SUS e nesse momento você cresceu, porque a médica que você conhece une o seu ser interno com o ser externo daquelas mulheres e então elas te ouviram atentamente, realmente interessadas, talvez um pouco chocadas, o que era possível observar em seus olhos arregalados. De repente um gongo foi tocado na China e uma nova integrante entrou no grupo, roubou a palavra e discorreu a falar dos seus dois partos normais e sua alegria por ter parido. “E se fosse hoje, ah se fosse hoje eu teria um desses partos à Gisele Bündchen, eu acho lindo, tu podes me passar o link desse filme aí?”

Você respirou, finalmente, na alegria da diversidade.

6 comentários:

  1. ai, a gente sempre passa por esse tipo de situacao né! que bom que voce se saiu bem!
    alaya

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  2. Nas primeiras idas ao Brasil passava por isso, mas sempre tinha um outro alguem pra dizer "Ahhh a Ju é doida, a corajosa teve parto normal, é mole?!!!", ou entao vinha outra simpatia em corpo pra mandar um "Ahhh mas la onde mora nem tem escolha né??? ", tambem rolam os questionamento do tipo "Por que nao veio ao Brasil? Sua tia poderia fazer suas cesarias numa boa...."
    Eu nem sempre consigo falar, prefiro dizer na cara dura que nao discuto parto com certas pessoas porque nao entenderiam mesmo e ficariam chateadas, so falo pra quem quer ouvir.....depois de tres PNs a posiçao ta clara, tem meu blog, tem a quantidade de coisas que coloco no face, acho que ja perceberam de que grupo faço parte!
    E viva a cara de alface!

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  3. Hahahahaha Juliana, "cara de alface", amei, considere teu termo roubado, é muito melhor do que o batido cara de paisagem! Você que criou?

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  4. Furtei por ai Claudia hahahhahaha, nao me lembro de ter criado nao!!!!!

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  5. Olá!
    Acabei fazendo uma cesária há um ano atrás, minha primeira (e espero que última). EU queria muito, muito, muito ter feito parto normal, fiz aulas de yoga e tudo mais pra ver se ajudava; mas eu completei a 40ª semana sem QUALQUER sinal de dilatção ou contração, aí a médica achou melhor operar. Fiquei bem chateada, queria realmente sentir minha filha vindo ao mundo e que ela também participasse ativamente do processo. Acho que a escolha da médica (super conceituada, coisa e tal) não foi a melhor no nosso caso.
    Enfim, vivendo e aprendendo.
    Abraços,
    Aline
    www.decaronanacegonha.blogspot.com

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