Cláudia Rodrigues
Depois de adiado na terça-feira pela Frente Parlamentar Evangélica, o projeto de lei que proíbe o uso de castigos corporais em crianças e adolescentes foi aprovado na última quarta-feira pela Câmara dos Deputados. Seguirá para a tramitação e votação no Senado a menos que haja recurso para o plenário da Câmara apreciá-lo novamente.Relatado pela deputada Teresa Surita (PMDB), o projeto prevê para pais agressores encaminhamento a programa oficial de proteção à família e a cursos de orientação, tratamento psicológico ou psiquiátrico, além de advertência. A criança agredida deverá ser encaminhada a tratamento especializado. Para aprovar a medida diante da resistência da bancada evangélica, a relatora precisou alterar o texto.
O presidente da Frente Parlamentar Evangélica, deputado João Campos (PSDB), se mostrou favorável ao projeto de lei somente depois que a palavra “dor” foi retirada do texto e “castigo” trocada por “agressão”. Segundo a frente evangélica não dá para saber a extensão da palavra “dor” e o termo “agressão” serve para proteger a educação familiar baseada em treinamento hostil. É inacreditável a resistência da bancada evangélica diante de uma proposta de lei que visa proteger as crianças dos abusos de autoridade parental quando temos alternativas pacíficas e amorosas até mesmo para domar cavalos!
Que a Frente Parlamentar Evangélica é conservadora não é novidade, mas defender a idéia de que a educação familiar precisa estar protegida por uma lei que cria brechas para castigos e dores é uma premissa ignorante.
É correto afirmar que a ignorância viceja entre cristãos e não cristãos quando se trata de educação, direitos humanos, direitos da criança e do adolescente. O que não falta no Brasil são pessoas defendendo e aplicando o método fácil e rápido de educar via repressão, castigos, agressões e a famosa “palmadinha educativa”. Não faltam nem mesmo psicólogos de porta de escola defensores de tapas e castigos como método para ensinar limites e disciplina. São sem dúvida argumentos de quem não passou da vigésima página de qualquer bom livro sobre educação e desenvolvimento infantil.
O argumento principal para educar via castigos e punições é que funciona imediatamente. E imediatamente funciona mesmo, temos incontáveis exemplos históricos de que o ser humano diante de ameaças, castigos físicos e agressões; obedece, se submete, faz o que mandam seus algozes, mesmo quando já é adulto. Os nazistas deixaram imagens gravadas que comprovam a submissão dos prisioneiros na luta pela sobrevivência, mas obviamente os que não morreram foram viver bem longe dos seus algozes.
A sociedade violenta tem apoiado guerras e genocídios de adultos. O que podemos esperar quando ela defende os pais como algozes dos próprios filhos?
E que pais e mães são esses que temem a lei da palmada? O que é que fazem com os filhos para temerem tal lei?
Ameaçar ou bater em uma criança que está tendo um acesso de raiva é o método mais chocantemente eficaz para fazê-la parar de ter o ataque, nem de longe isso pode ser chamado de educação porque educação é a arte de compreender e agir adequadamente, civilizadamente de acordo com a idade da criança em questão.
Entre dois e quatro anos, um pouco antes, um pouco depois, as crianças podem apresentar crises de raiva por motivos aparentemente bobos para os adultos. Muitas vezes os adultos riem dos motivos infantis e resolvem com agressões, castigos, punições, divertindo-se perversamente com a ingenuidade da criança e com o poder que podem ter sobre ela. Exatamente como fazem os soldados diante de um pedido desesperado de um prisioneiro de guerra ou os maus psiquiatras diante de um doente mental.
É fácil, extremamente fácil agredir alguém com menos poder para obter a submissão, a obediência, o famoso limite.
Em uma guerra ou em um hospital psiquiátrico que defenda a agressão como método de tratamento, não se espera que os castigos e o domínio psicológico se transformem em uma relação, em um relacionamento amoroso, pacífico, construtivo. Entre pais e filhos, curiosamente, espera-se que depois de anos de obediência servil, tapas na bunda, insultos, ameaças, crie-se um relacionamento saudável. O que se cria, no máximo, é algo semelhante à Síndrome de Estocolmo.
Na melhor das hipóteses se colhe a continuidade da perversão, a imitação, caso típico dos adultos que se orgulham de ter apanhado e naturalmente passam a conta para a próxima geração, em vingança familiar. Obviamente o comportamento repetidor já mostra o tamanho da seqüela deixada na saúde mental dessas pessoas.
Mais bem-resolvidas são as famílias que ousam cortar esse processo e que entendem que o adolescente que bate porta na cara dos pais é aquele que levou porta na cara na infância porque quem foi bem tratado pelos pais, com respeito, respeitará seus pais, honrará a educação que teve sabendo educar, um processo trabalhoso, que se faz no cotidiano, com amor e sem os mimos da culpa, estes sim extremamente atrelados às agressões, abandonos, rejeições e descasos, especialmente nas classes mais abastadas.
Os pais que batem sentem-se culpados e acabam mimando os filhos, criam uma relação de toma lá da cá, acabam sendo manipulados por crianças cada vez mais exigentes por coisas e descompromissados nas relações humanas, tão pobres de diálogo, de contato genuíno, de acordos e tempo para compreensões. Criam adolescentes rebeldes, revoltados com causa, pela causa da agressividade ou eternos submissos.
Não dá para saber o que é pior, se um adolescente revoltado, transgressor ou um eterno submisso, amedrontado, mas ambos, já se sabe, são mais vulneráveis ao bullying, como ativos ou receptivos. O bullying na escola está intimamente relacionado com maus tratos na família.
Relações humanas pacíficas produzem cidadãos criativos, libertários, conscientes de seus direitos e dos direitos dos outros, dos próprios limites e dos limites alheios porque puderam pensar sobre, tiveram tempo para amadurecer e entender seus processos de socialização.
A confusão que se faz entre estabelecer limites e produzir violências familiares é irritante para qualquer pessoa que consegue refletir sobre a delicadeza da criança e sua estrutura em desenvolvimento, em aprendizado. A criança imita o adulto, repete suas ações, tende a agir para agradar seus cuidadores e pode desenvolver atitudes muito hostis e desequilibradas quando se sente rotineiramente traída em suas estratégias de manter-se viva.
Uma criança que está fazendo birra; se quer algo que a mãe ou pai entende que ela não pode ter porque essa é a norma educativa, como não comer um doce na hora do almoço, merece apenas poder expressar sua raiva, cabe aos pais esperar a raiva passar e continuar tocando o barco, pacientemente. “É assim mesmo, não podemos te dar o doce agora, não faremos isso, mas estamos aqui, tu podes contar conosco, é teu direito não gostar que seja assim, mas é assim que é.” Ensinar a criança a lidar com a frustração é uma maneira sensível e inteligente de educar e promover na criança a habilidade para lidar com os limites impostos.
Curiosa é a deseducação clara dos pais ameaçadores, que iniciam com chantagens, a birra cresce, a criança apanha, se cala intimidada e acaba levando o doce de um dos pais porque ficou com pena de ter maltratado a criança. Qual criança terá entendido o limite? Qual dessas duas crianças exemplificadas tenderá a repetir a birra por infindáveis vezes desafiando os pais?
Educar na paz exige muita inteligência e fôlego para entender que a criança nem sempre compreende os nossos “nãos”, os nossos motivos de adultos. Educar na paz faz com que possamos lidar com nossas próprias frustrações de não podermos dar tudo o que um filho pede ou quer.
Não existe limite a ser imposto, limite é construído diariamente sob o pressuposto de que a criança é inteligente e merece atenção, compreensão, explicações e consolo físico, moral, quando ela definitivamente não amadureceu para um determinado não. Nem de longe quer dizer ceder, se o caso não é para ceder. Os adultos é que precisam entender que deixar o salário do mês em cima da mesa ao acesso de uma criança de um ano pode virar picadinho no vaso sanitário. Cortar as mãozinhas da criança não vai ajudá-la a entender que aquilo era a comida do mês.
Qualquer um de nós, pais e mães, em algum momento da vida já perdeu a paciência, já agiu como algoz de um filho, já insultou, mas fazer disso uma regra de educação, não entender como erro que precisa ser revisto só tem um nome: ignorância.
E aqui falamos somente do básico, da palmadinha das famílias bélicas lights, não entramos na profundidade que pode ter algumas relações verdadeiramente cruéis com crianças, que infelizmente estão estampadas diariamente nos jornais. É para essas relações extremamente doentias que a lei da palmada chega como medida bastante frágil ainda, difícil de comprovar e tratar. Segundo o Centro Latino Americano de Estudos de Violência e Saúde- CLAVES- a violência doméstica é a segunda causa de mortalidade entre crianças de 1 a 4 anos.
Os defensores das agressões contra crianças como método educativo gostam bastante de pontuar que existe um limite entre palmadinha e espancamento, mas é a própria resistência natural da criança que vai aumentado a “necessidade” dos pais em elevar as punições, os castigos. Crianças que apanham costumam ser consideradas por seus pais como “levadas”, “impossíveis”, mas é algo espontâneo após vencerem a palmadinha, desafiar os pais, é até saudável do ponto de vista comportamental a criança ir aumentando seu tom de desafio. O exemplo brasileiro mais clássico é o da menina Isabella Nardoni, que não costumava apanhar do pai ou da madrasta até a fatídica noite em que foi brutalmente assassinada após um espancamento.
A violência doméstica produz também a criança que já se sente previamente coagida, merecedora do pior tratamento vindo daqueles que deveriam zelar por sua saúde física e mental. Ela é incapaz já desde tenra idade de expressar a raiva, desenvolve com os pais uma relação de medo, terror, jamais de respeito e companheirismo.
Para além da prevenção às agressões corporais, deveríamos avançar ainda mais rumo a uma educação verdadeiramente pacífica. Chegará o dia em que as “melhores” escolinhas e creches vão ter que responder por atitudes corriqueiras e consideradas normais pela sociedade, como ameaçar e assustar criancinhas, gritar com elas, submetê-las a choros porque não está na hora de comer ou de dormir, por obrigar bebês sem sono a dormir no horário institucionalizado e outras barbaridades que, por enquanto, ninguém peita.
Enquanto isso bilhões de crianças no mundo continuarão sonhando em ter animais como pais em substituição aos humanos, esses cristãos cristalizados pela violência.
Artigo publicado originalmente em 16/12/2011 no Sul21
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