terça-feira, 31 de julho de 2012

Leite de mulher, tabu a ser vencido

Cláudia Rodrigues

A recomendação da Organização Mundial de Saúde, apoiada em pesquisas que se renovam constantemente nos últimos vinte anos, é que todas as crianças, ricas ou pobres, de qualquer etnia ou religião, mamem somente leite humano nos primeiros seis meses de vida, passem a receber outros alimentos como complementos a partir dos seis meses e sejam mantidas no peito até pelo menos dois anos de idade. Os benefícios se acumulam a cada pesquisa.
A realidade é bem diferente. No Brasil, apenas 41% dos bebês chegam aos seis meses mamando exclusivamente. Esse índice, que também é uma média mundial, compromete outro, o da mortalidade infantil entre menores de cinco anos. Segundo a OMS o aleitamento materno exclusivo até os seis meses e prolongado até os dois anos, é capaz de diminuir em até um quinto as mortes entre crianças menores de cinco anos. Para qualquer criança, o leite humano é o melhor digerido, contém proteínas específicas, hormônios humanos e imunoglobulinas que protegem as crianças de infecções variadas, diarréias e alergias. A composição do leite humano não é estática, ela muda conforme as fases do bebê, de acordo com as necessidades de crescimento.
As informações já decoramos, qualquer panfleto de saúde contém as técnicas para vencer dores, esfolamentos e mastites e dificuldades de pega, mas sair do buraco dos 41% e chegar ao objetivo da OMS, que é atingir um total entre 90% e 100% de bebês mamando até os dois anos, não é tão fácil, nem tão poético. Mais do que campanhas, precisamos peitar os problemas reais que impedem o aumento dos índices de amamentação e para isso precisamos dos peitos de volta, porque eles se foram com os sutiãs queimados, o mercado foi tomando conta deles desde o pós-guerra, quando entramos numa verdadeira cruzada para aumentar a produção de leite de vacas.
O peito político
Difícil amamentar exclusivamente até os seis meses, quando precisamos voltar ao trabalho aos quatro meses. Digamos que as empresas privadas, a exemplo do Governo Federal, passem o período de quatro meses para seis meses. Muito bonitinho, num belo dia dos seis meses do bebê nós saímos de casa e ele passa a receber, assim de golpe, todas as refeições durante 8 horas de ausência. Não funciona, não pode ser assim, ou não deveria ser assim. E isso, óbvio, tem a ver com problemas de desmame antes da hora. Algumas mães ficam tão aflitas que começam a introduzir alimentos e até leites artificiais dois meses antes de terminar a licença-maternidade a fim de efetuarem uma introdução gradual de outros alimentos.
O peito econômico
Na lógica do mercado, mulher amamentando mais, com licença-maternidade ainda maior é prejuízo que vem de todos os lados. Consome menos e trabalha menos num mundo que fabrica máquinas de preparar mamadeiras e infindáveis fórmulas que fazem propaganda enganosa de “semelhante ao leite materno”.
As empresas, por questões econômicas, não respeitam a lei, que garante intervalos para as nutrizes amamentarem em salas específicas e equipadas com materiais essenciais para coleta e estoque de leite. Muito menos mantêm creches próprias ou subsidiadas perto do local de trabalho. Não precisa dizer que não há fiscalização ou multas. Não precisa dizer que há demissões injustas para mulheres que ousam questionar o papel da empresa.
O peito histórico
Historicamente a relação da mulher com o peito lactante passou por várias fases. Lá nas cavernas manter a criança no peito era questão de sobrevivência. Mamavam ou morriam. No século XVII, para salvar bebês sem mães e sem amas, recipientes de couro ou metal eram usados como mamadeiras, mas as infecções derrubaram os modelos, os bebês não sobreviviam. Nos século XVIII tentou-se com as cerâmicas, mas também não deu certo, tanto por dificuldades de limpeza quando dos bicos, que eram feitos de pano. A solução mais chique foi contratar amas de leite. No Brasil da escravidão sinhazinha que se prezava não colocava o peito para fora, era coisa para as negras, que ganhavam lugar de destaque na casa grande para amamentar os bebês da patroa. Em 1840 a borracha vulcanizada entrou na parada, mas o mau cheiro derrotou a invenção. Somente nos anos 1950 entrou o pyrex e o bico de borracha com cheiro suportável. Empresas como a Nestlé vieram com tudo nesse mercado e literalmente gritavam que o leite industrializado era melhor, mais limpo, mais forte e mais gordo do que o leite humano. As mulheres acreditaram e não havia uma mãe nesse Brasil que não portasse sua mamadeira. Na década de 1980 o vidro foi substituído pelo plástico, foi a época em que os bebês passaram a ser deixados sozinhos com suas mamadeiras, elas não quebravam e a mulher alcançava a sua independência máxima dos filhotes humanos, plenamente terceirizados. Hoje se sabe que as mamadeiras de plástico liberam uma substância, o bisfenol, que causa câncer.
O peito erótico
Peito dá prazer sexual e confunde as cabeças das famílias, dos homens ogros e das mulheres cinderelas. Como assim aquele peito que me excitou ontem à noite, hoje acorda cheio de leite? Pois é, o mesmo peito, a mesma mulher, é assim de fato, mas na prática, haja terapia! Tem de tudo. Das obsessivas que ficam limpando os bicos até sangrar com medo de dar sapinhos nos bebês, às que santificam o período da amamentação perdendo o apetite sexual. Dois anos sem sexo porque temos um bebê no peito? Quem agüenta isso? Como resolver isso? Chamemos o peito psíquico!
O peito psíquico
Esse é lelé da cuca. Para além das técnicas e das campanhas que mostram e demonstram como fazer e porque fazer, as mulheres precisam de uma vastidão de grupos terapêuticos para acessarem seus medos e travas em relação ao peito que dá leite. Com tanto histórico e confusões, camada sobre camada cultural, mercadológica e política, foram achatando nosso aleitar e nos deixamos convencer que amamentar é uma parada dura, que suga a liberdade, a individualidade e nos acorrenta em laços invisíveis e sufocantes com as crianças. Hoje cremos, internamente, que algumas de nós têm leite e outras não, que alguns leites são ralos e fracos, outros fortes e gordos.
Seguramos no narcisismo, o leite não sai, o peito empedra. Soltamos na alegria e ele vaza, molha tudo, encabula os passantes. Mas afinal, cadê os mililitros? Por que diabos peitos não vêm com mililitros escritos? Será que ainda tem? Sobrou da ultima mamada? Quem garante? E se o bebê não engordar? Esprememos, conferimos, não acreditamos, não pode ser tão mágico! Será que ele chora tanto e acorda tanto e quer tanto nos chupar porque não somos, porque não temos suco de mãe? Cadê o pediatra? Está na ignorância da mulher amada, talvez dos peitos da mãe que ele não teve. Não há estudo nem evidências que salvem uma dor emocional tão profundamente arraigada nas camadas de desaprendizado emocional.
Toma-lhe uma história de baixa estima, insultos e agressões, temos uma mulher que não crê na força do líquido branco fabricado misteriosamente em seu corpo. Ou não, depende da capacidade de reparação de cada uma. Sentimentos maus nos darão um bom leite? E se envenenar o bebê? Oh, ninguém pensa isso em sã consciência. É na insana inconsciência que alimentamos nosso bicho incapaz de amamentar.
O peito feminista
Ainda está nascendo. Em nichos pequenos, guetos, ONGs, grupos de apoio, está emergindo o verdadeiro peito feminista. Foi legal demais queimar os sutiãs na praça, valeu velhonas, ganhamos o mundo, o mercado de trabalho e empunhamos a mamadeira como símbolo de libertação da mulher. Foi um erro jogar os bebês para longe do leite do peito, o leite nosso, que só nós temos. Colhemos com isso uma inversão de valores e hoje se respeita e se admira o peito provocante na blusa justa, sob o sutiã bombado, recheado de espuma ou siliconado, mas condenamos, preconceituosamente, o peito que dá leite ao bebê. As nutrizes diariamente são discriminadas por amamentarem bebês e criancinhas maiores. Não faltam mulheres, colegas de peito, ou homens para perguntar: “Esse bebê não está grande demais para mamar?”
Não, não está, o peito é nosso!

2 comentários:

  1. Pois é, Cláudia, quando você fala do Peito Feminista não pude deixar de lembrar do trecho da entrevista da revista "Claudia" sobre amamentação prolongada (acho que foi a edição desse mÊs) em que uma feminista critica ferrenhamente a amamentação, ainda mais prolongada. Não entendo como uma feminista não compreende que o direito de amamentar é um direito sobre o nosso corpo, é viver nossa feminilidade e nosso poder de mamíferas. Parabéns pelo texto. Abçs, Clarissa.

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    1. Pois é Clarissa, o feminismo está dividido em várias vertentes. Há feministas que defendem a amamentação também, mas historicamente houve confusão e ainda existem as retrógradas que teimam em não reconhecer os erros políticos e históricos.

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