quarta-feira, 25 de julho de 2012

No meu não!

Cláudia Rodrigues
Nascer e morrer são eventos naturais, biológicos, que diferem um pouco de outras realizações fisiológicas, todas aquelas que ocorrem entre o nascimento e a morte. Nascimento e morte são como um envelope de nossa fisiologia. Lá dentro há todo o resto que nos faz vivos e em funcionamento, em movimento. Da primeira mamada ao último suspiro passamos por uma intensidade de agradáveis fisiologices. A mais intensa delas talvez seja o orgasmo sexual na vida adulta, mas a bem da verdade se estamos apertados para urinar, esse é o melhor dos prazeres, se estamos cansadíssimos, um bom lugar para dormir é o maior dos prazeres, se temos fome é um prato de comida, na sede é a boa água, para o peito cheio de leite, a boca faminta do bebê. E há a doença, a loucura, o medo e o horror, a fome, a miséria e a dor. Outro lado da vida, o avesso, o aperto que busca soltura, a contração antes da expansão. E as travas no meio, a (in)capacidade de administrar e deixar fluir. É tão bom atender nossos prazeres fisiológicos, tão vital para nós, que passamos a investir obcecadamente neles. Culturalmente nos tornamos insaciáveis e literalmente comemos a vida pela boca, pelas mãos, pelos olhos, com nosso corpo inteiro. Nós queremos reter a vida, eternizar o gosto bom que entra pela boca e assim sofisticamos a alimentação, os líquidos todos que criamos para beber. Cinema, literatura, viagens, nós podemos tudo e mais do que poder tudo é possível agenciar tudo. Podemos comprar o livro que queremos sem dar passos até uma livraria, podemos viajar de maneira programadíssima parando em hotéis reservados com meses de antecedência. O cinema vem em uma cartela, com vários filmes em várias salas e há ainda lojas que locam, por preços módicos, filmes de muitas épocas para se ver em casa. Nos iludimos de vida sem desprazer, só queremos o bem bom, o doce engôdo da gula.
Temos a inocente certeza de que pegar um avião e descer sem rumo em alguma capital do mundo por aí para depois catar um trem e ir parar em um vilarejo jamais visto é coisa do passado, desnecessária e muito arriscada. Sair ao léu olhando as salas de cinema a escolher um filme pelo nome, sem ter visto a sinopse, correndo o risco de errar e cair num abacaxi também é uma desmodernice sem tamanho. Esquecer a lista dos livros que se quer ler e cair em um sebo, perder-se da linha de raciocínio inicial e levar para casa algo como Memórias de Cecília de Assis Brasil, isso seria a mais a completa loucura, falta de foco, falta de meta, de visão empreendedora. Mais do que buscar prazer, é preciso ter certeza de que não teremos desprazer algum, surpresa alguma.
E bem, dos controles todos sobre as coisas até se pode tirar alguma real vantagem em reservar hotéis, consultar sites de sebos e livrarias, ler sinopses de filmes, mas na área da fisiologia e da saúde, é uma babaquice sem tamanho essa dependência dos serviços médicos festivos de prevenção e agendamentos. A moda de buscar doença e prever erros de vida ou Eros na vida é de lascar, literalmente overdose, fim da picada.
Prevenção ao parto em casa, a nova onda daquele inorgástico homem que fala em nome do Conselho Federal de Medicina do Rio de Janeiro, é de chorar de rir. Não dá nem para saber se é mais bizarra essa indústria do nascimento ou a da morte. Mais curioso que ambas funcionam no mesmo local, o hospital, um lugar voltado para curar doenças, supostamente local para restabelecer uma saúde abalada.
Nem a morte nem o nascimento são doenças, mas momentos familiares que deveríamos ter preservado como sagrados. Se acontece de alguém nascer ou morrer em um ambiente desses, ok, mas sermos obrigados a nascer e morrer sendo entubados, passando por procedimentos apressados e impessoais aí já é demais.
Medicina invasiva é para quem precisa, até para quem acha que precisa mesmo sem precisar, mas não dá para descer goela abaixo de todos nós essa dependência de médico e da medicina para o envelopamento de nascer e morrer. Já tem aí as mil e uma doenças e dores no meio do caminho, já é um sábio exercício viver com pouca medicina e poucos medicamentos no meio dessa estrada cheia de “pervensões”.
A gente tem o direito de nascer nos braços da mãe e, com sorte, morrer nos braços dos filhos.
Nascer e morrer é coisa de paz, é simples, fisiológico, apenas é.

Um comentário:

  1. Noussa, não tinha lido esse ainda. Tá lindo! Parabéns! bj, Dulce

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