Nascer e morrer são eventos naturais, biológicos, que
diferem um pouco de outras realizações fisiológicas, todas aquelas que ocorrem
entre o nascimento e a morte. Nascimento e morte são como um envelope de nossa
fisiologia. Lá dentro há todo o resto que nos faz vivos e em funcionamento, em movimento. Da
primeira mamada ao último suspiro passamos por uma intensidade de agradáveis
fisiologices. A mais intensa delas talvez seja o orgasmo sexual na vida adulta,
mas a bem da verdade se estamos apertados para urinar, esse é o melhor dos
prazeres, se estamos cansadíssimos, um bom lugar para dormir é o maior dos
prazeres, se temos fome é um prato de comida, na sede é a boa água, para o
peito cheio de leite, a boca faminta do bebê. E há a doença, a loucura, o medo
e o horror, a fome, a miséria e a dor. Outro lado da vida, o avesso, o aperto
que busca soltura, a contração antes da expansão. E as travas no meio, a (in)capacidade
de administrar e deixar fluir.
É tão bom atender nossos prazeres fisiológicos, tão vital para nós, que
passamos a investir obcecadamente neles. Culturalmente nos tornamos insaciáveis
e literalmente comemos a vida pela boca, pelas mãos, pelos olhos, com nosso
corpo inteiro. Nós queremos reter a vida, eternizar o gosto bom que entra pela
boca e assim sofisticamos a alimentação, os líquidos todos que criamos para
beber. Cinema, literatura, viagens, nós podemos tudo e mais do que poder tudo é
possível agenciar tudo. Podemos comprar o livro que queremos sem dar passos até
uma livraria, podemos viajar de maneira programadíssima parando em hotéis
reservados com meses de antecedência. O cinema vem em uma cartela, com vários
filmes em várias salas e há ainda lojas que locam, por preços módicos, filmes
de muitas épocas para se ver em
casa. Nos iludimos de vida sem desprazer, só queremos o bem
bom, o doce engôdo da gula.
Temos a inocente certeza de que pegar um avião e descer sem
rumo em alguma capital do mundo por aí para depois catar um trem e ir parar em
um vilarejo jamais visto é coisa do passado, desnecessária e muito arriscada.
Sair ao léu olhando as salas de cinema a escolher um filme pelo nome, sem ter
visto a sinopse, correndo o risco de errar e cair num abacaxi também é uma
desmodernice sem tamanho. Esquecer a lista dos livros que se quer ler e cair em
um sebo, perder-se da linha de raciocínio inicial e levar para casa algo como
Memórias de Cecília de Assis Brasil, isso seria a mais a completa loucura,
falta de foco, falta de meta, de visão empreendedora. Mais do que buscar
prazer, é preciso ter certeza de que não teremos desprazer algum, surpresa
alguma.
E bem, dos controles todos sobre as coisas até se pode tirar
alguma real vantagem em reservar hotéis, consultar sites de sebos e livrarias,
ler sinopses de filmes, mas na área da fisiologia e da saúde, é uma babaquice
sem tamanho essa dependência dos serviços médicos festivos de prevenção e
agendamentos. A moda de buscar doença e prever erros de vida ou Eros na vida é
de lascar, literalmente overdose, fim da picada.
Prevenção ao parto em casa, a nova onda daquele inorgástico
homem que fala em nome do Conselho Federal de Medicina do Rio de Janeiro, é de
chorar de rir. Não dá nem para saber se é mais bizarra essa indústria do
nascimento ou a da morte. Mais curioso que ambas funcionam no mesmo local, o
hospital, um lugar voltado para curar doenças, supostamente local para restabelecer uma saúde abalada.
Nem a morte nem o nascimento são doenças, mas momentos familiares que
deveríamos ter preservado como sagrados. Se acontece de alguém nascer ou morrer
em um ambiente desses, ok, mas sermos obrigados a nascer e morrer sendo
entubados, passando por procedimentos apressados e impessoais aí já é demais.
Medicina invasiva é para quem precisa, até para quem acha
que precisa mesmo sem precisar, mas não dá para descer goela abaixo de todos nós
essa dependência de médico e da medicina para o envelopamento de nascer e morrer.
Já tem aí as mil e uma doenças e dores no meio do caminho, já é um sábio exercício
viver com pouca medicina e poucos medicamentos no meio dessa estrada cheia de “pervensões”.
A gente tem o direito de nascer nos braços da mãe e, com
sorte, morrer nos braços dos filhos.
Nascer e morrer é coisa de paz, é simples, fisiológico, apenas é.
Noussa, não tinha lido esse ainda. Tá lindo! Parabéns! bj, Dulce
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