domingo, 4 de novembro de 2012

Doidices do bocão nosso de cada dia








Cláudia Rodrigues


A sociedade contemporânea sofre de um mal inegável: oralização. Nos últimos anos multiplicaram-se no planeta duas doenças que demonstram o cúmulo da oralização, a bulimia e a anorexia. Elas são a ponta extrema dos hábitos orais, dos conflitos com os hábitos orais culturalizados.
Doenças ligadas aos hábitos orais excessivos ou reprimidos, aos conflitos com o comer existem faz tempo. Gente enjoada para comer, repleta de restrições, assim como os vorazes, não nascem assim, se desenvolveram assim devido ao que receberam como educação oral desde bebês.
Em absoluto quer dizer que toda criança oralizada vai ter bulimia ou anorexia, vai ser um enjoado para comer eterno ou um obeso. Depende de muitos outros fatores e associações.
Agora, é fato que as doenças da oralidade se desenvolveram tanto que a indústria farmacêutica e cirúrgica produziu um verdadeiro arsenal de equipamentos para resolver os problemas. Estamos salvos! Ou será que deveríamos entrar na sombra e dar uma fuxicada em como estamos produzindo socialmente essas doidices?
Há algumas fases distintas a serem pesquisadas desde que a civilização tomou posse de suas necessidades e habilidades para além de coletar, caçar, plantar e armazenar alimentos. Foi uma evolução chegar ao sistema comunitário de armazenar grandes quantidades para vender grandes quantidades. Foi um lance esperto, mola-mestra do capitalismo as commodities alimentícias. Se deu certo por um lado e supostamente temos comida para todos, embora a maioria não possa consumi-la, por outro fabricamos inúmeros problemas econômicos, ambientais, sociais, políticos e  psíquicos. Vou tentar me ater aos psíquicos, embora estejam atrelados a todos os outros.

Corre o tempo vamos lá atrás antes do vidro e do plástico. Nasciam os filhos e nós os pendurávamos ao peito, conforme cresciam entravam na coleta, iniciávamos lentamente a introdução de outros alimentos e eles se viravam. Alguns dos muitos filhos não sobreviviam, era lei da selva. A ânsia por comer os salvava ou os matava e a nós também, entre outras doenças. Como nosso ser era muito mais pré-pessoal do que pós-pessoal, muito mais ligados às necessidades fisiológicas básicas do que às culturais, não havia conflitos excessivos entre o nosso eu interno e o nosso eu externo, assim não proliferavam ainda problemas psíquicos. Nem muita culpa, nem muitos chororôs. Nascer e morrer eram obras do acaso. Sobreviver dependia da força nas pernocas para buscar comida desde tenra idade.
Salto no tempo e estamos portando uma mamadeira de vidro. Ela tem o poder incrível de saciar a fome dos bebês em poucos minutos. Todos os bebês devem sobreviver a qualquer custo e cai-se na suposição de que quanto mais gordo melhor, mais forte. Começam as colheradas a mais e no meio desse riquíssimo caldo cultural surge uma novidade inacreditável: adeus ao peito, adeus ao leite materno. Durante anos, e ainda hoje escuta-se que o leite humano é fraco, não tem substância. Foi uma campanha de mercado da Nestlé e em algum momento da década de 1960 houve um joint venture entre a Nestlé e a Johnsons, quando eram eleitos por concursos os famosos bebês Johnsons, aqueles super bebês, mega pesados e branquíssimos.
A partir daí a indústria alimentícia investiu em comida-entretenimento com muita cor, muito sabor artificial, muito sal, muita gordura, leite de vaca e farináceos. Nessa mesma sociedade, em que curiosamente idolatra-se o corpo esguio, aprendemos que a voracidade oral, natural em nós na luta pela sobrevivência com grande intensidade nos primeiros dois anos, deve ser incentivada, idolatrada a perder de vista pelos 3, 4, 5, 6, 10, 12, 33, 43, 67, 88 anos de vida.
Da chupeta, passando pela mamadeira, criamos os chicletes, os sucos artificiais com biquinho, as balas, os picolés, pirulitos, sacolés, colherinhas enfeitadas, todo tipo de objeto, enfim, para garantir que nenhuma insatisfação oral existirá. Para os adultos temos o álcool, o tabaco, as fumaças todas, as pílulas, inclusive pílulas para evitar que tenhamos fome e assim possamos ser magros sem sentir fome. Parece piada! É como se estivéssemos vingando a dura vida lá nos primórdios da civilização quando precisávamos lutar para comer e festejar as épocas de colheita, os deuses dos alimentos.

Esse pacote todo de oralização não vem sem efeitos colaterais e eles não se encerram nas doenças acima citadas. A oralização acaba produzindo insatisfação vital, dificuldades para lidar com a frustração, para esperar, para que nos consolemos com nossos corpos de outras maneiras que não aquela inicial, primária de comer e beber. Pernas e braços servem para pouco mais do que ir até o armário, que não é gelado e possui comidas prontas em temperatura ambiente.
Salto ao momento atual, de reparação. Mães críticas ao status quo buscam revincular os filhos ao seio, demonizam chupetas e mamadeiras e caem para o lado oposto: o vínculo a perder de vista ao aleitamento materno, crianças de 6 anos mamando na mãe como se fosse a sétima maravilha do universo, bicotas na boca dos filhos em nome do afeto. O corpo da criança não sente, não é, a criança não pode ser sujeito da própria história, não vive separada da mãe, do amor possesso e absoluto em simbiose, preso aos dois anos de idade. Produzimos uma sociedade de pessoas com sintomas eternos de estarem com dois anos de idade.Penduramos, encostamos, o comportamento oral é assim, espera por um colo eternamente, por mais que coma nunca se sente nutrido. Não há amor que chegue, não há fim entre o corpo do outro e o nosso, é o corpo que oscila entre comer excessivamente para sentir-se vivo ou não comer suficientemente e assim não poder sentir-se como corpo inteiro separado dos outros, separado do mundo.

Mas e se a criança quer o peito, devemos negá-lo? É ela se ela quer, como não vou dar o consolo oral, o meu amor inteiro, meu peito, minha boca na sua boca? Como posso ser uma mãe boa o bastante se não me despedaço inteira entregue ao filho que saiu do meu ventre? Ora, mas é claro que um dia ela vai sair do meu peito, é claro que não vai mamar até os 17 anos de idade, mas enquanto pedir e precisar eu vou dar, já tem tanta coisa que deixo de dar!
Sim, tanta coisa, entre elas a noção de que a criança é um ser separado do corpo da mãe, noção essa que a própria criança cria, desde que o mundo é mundo, entre 2 e 3 anos de idade. E não cria se é impedida, se é induzida, se é educada de modo a compreender que os consolos orais não têm fim a não ser que ela os rejeite, enojada de tanto grude.
A ilusão do prazer sem fim é algo que de fato o recém-nascido necessita, a ilusão da simbiose vivida na barriga é extremamente necessária, mas criar filhos como se fossem extensões de nossos corpos até que eles próprios possam verbalizar que não o são, faz parte da inconsciência materna contemporânea, de um drible ao desenvolvimento natural do corpo humano, que é apto para mamar e desmamar, descobrir os prazeres lúdicos e anais e misturar isso tudo em porções equilibradas. Educação oral existe ou pelo menos deveria existir. Prevenção de neuroses existe. C.R.

2 comentários:

  1. Interessante... me fez pensar.
    Como seria então, no modelo 'ideal', o desmame? Antes dos dois anos? Li alguns livros de psicologia orientando início do desmame por volta dos 9 meses, quando dá início a faze oral ativa (morder), embora seja bem antes do que recomenda a Org. Mundial de Saúde.
    Meus dois primeiros filhos deixaram o peito sozinhos, um com 1,6 e o outro com 2,2 anos. Foi uma diferença bem significativa do tempo de amamentação de cada, mas percebo que foi o que a individualidade de cada um queria e teve. Nunca comprei uma mamadeira na minha vida, forma do peito pro copinho... não chuparam chupeta...
    Nunca 'desmamei' voluntariamente eles. Simplesmente acontecia... um dia eles não pediam mais, e no outro também e assim acabava.
    Sempre penso que desmamar bem e naturalmente seja tão importante quanto amamentar.
    O homem natural (indígenas, aborígenes) amamentam por longos anos, servindo isto, até mesmo, como um controle de natalidade...

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    1. Sim, parece que no caso dos seus filhos houve uma boa recepção, bom atendimento e a mãe não rejeitou e nem se apegou à amamentação excessivamente.

      No status quo rola desapego precoce, desmames abruptos, sofrimentos e cortes muito antes da criança se assegurar da simbiose, muito antes de estar apta corticalmente para a simbiose, é a regra, com exceções.

      Na contracultura a tendência são excessos, peito como cala-nenê em estrada a perder de vista, livre demanda para crianças de 3 anos e sentimentos mal-resolvidos das mães que prendem a relação na manipulação por meio do peito-afeto-leite. É a tendência, com exceções.

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