segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Desrazões do planeta ervilha

Cláudia Rodrigues




Na última sexta-feira aportei em Brasília para ministrar as oficinas GP&S e Inscrições Corporais. Uma das quatro organizadores, Heloiza Egas, leva-me direto ao local reservado, o Mercado Cultural Piloto, localizado no Jardim Botânico. A arquitetura é chocante, artística, caótica, totalmente erguida com materiais reciclados, paredes inteiras feitas com janelas de ônibus antigos. Nos recebe lá Gláucia, outra das organizadoras, ela mora no local, que apresenta com orgulho. "Meu sogro ergueu isso tudo e nos cedeu o espaço, ele adora casa cheia!" Posso escolher se vamos fazer as oficinas na sala de aulas de Tai Chi Chuan ou no Cine-Teatro Grande Otelo. Passamos por uma ponte dentro do prédio, estamos no Cine-Teatro, logo na entrada, jogado em um canto, um enorme poster da Marilyn Monroe e o clima intimista, perfeito, é ali que vai ser.

Ao meio-dia de sábado, estamos almoçando com o grupo, Gláucia nos apresenta orgulhosa o sogro, um homem alto, de passos firmes, ele demonstra satisfação por nos ver ali, nos dirige um sorriso e ao final do almoço nos presenteia bergamotas como sobremesa. Conversa vai, conversa vem, fico sabendo que J.Pingo, o dono do local, é meu conterrâneo, que a família toda é de Alegrete. Atiça-me a veia jornalística querer saber como ele foi parar ali, de que mundos de Alegrete um sujeito funda em Brasília um local tão desconstruído, nada conservador. Pai de seis filhos, foi o homem de quase meia-dúzia de mulheres, as amadas especiais, as fecundadas. Ele paira naquele andar de pantera, que só os homens gigantes conseguem ter. Não há tempo para matérias, faço as contas, não há tempo.
Terminam os trabalhos, na saída miro o bar do local, lá está ele sentado à mesa com amigos, a figura enigmática, passa os ares de estar realizado, pleno, sorri. Não há tempo para matérias, quem sabe um dia, quem sabe dou a dica para um amigo em Brasília, quem sabe rola um filme naquele cenário de perplexidade e arte.


Manhã seguinte, domingo cedo, antes de começar os trabalhos, Gláucia nos recebe com uma tristeza infinita nos olhos: o grande J.Pingo morreu. Não há palavras.

Sugiro, quem sabe, devemos desmarcar, mas ela e Tobias, um dos seis filhos, acham que não, que Pingo gostava de casa cheia, que o Cine-Teatro Grande Otelo era o xodó dele e que será bom dar prosseguimento aos planos.

E assim foi, um dia de trabalho que começou com o afeto, a concentração e os olhos fechados daquelas mulheres que estavam ali para trocar sobre a vida, sobre as crianças, sobre modos contraculturais de educação e de cultura para seus filhos e suas vidas, naquele local, que inspira e transpira em sincronicidade de propósitos.

Fizemos mais do que um minuto de silêncio, até porque não foi em silêncio, oferecemos uma Bachiana de Villa Lobos para o dia inicial de J.Pingo na dimensão do universo.

E nós que estamos vivos queremos saber dos propósitos da ervilha, das coincidências belas ou trágicas, alegres ou tristes e não tem explicação, mas ainda assim, ainda que não haja explicações, razões, culpas e desrazões, há algo que precisamos fazer, algo, pequeno que seja, do nosso ínfimo tamanho, já que as pessoas vão e ficam seus filhos, seus netos e as obras que elas ergueram. Então que as obras prossigam, que o Mercado Cultural Piloto receba mais apoio das autoridades culturais de Brasília porque é único, foi feito com amor e arte, com pedaços das sobras, das tantas sobras que nem sempre são eixos de uma visão tão centrada. O caos da obra do Centro Cultural Piloto erguido por J.Pingo é a síntese da expressão dos novos caminhos que precisamos focar nesse mundo careta de prédios ultrassépticos que engolem as pessoas e o dinheiro do mundo.

Mexam-se brasilienses, invistam no que faz sentido, frequentem, fermentem o legado desse grande artista que partiu.

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