quinta-feira, 27 de março de 2014

Feminismo, das palavras ao corpo

Cláudia Rodrigues 

Gordos ou magros, mais quadrados ou mais arredondados, mais musculares ou mais flácidos, todos os corpos são capazes de parir e todos podem também literalmente emperrar na hora do parto porque parto é inundação de sentimentos, sentimentos que produzem hormônios, sentimentos que definem respirações, sentimentos que podem moldar travas musculares e viscerais.

Um ombro relaxado na hora do parto pode fazer total diferença, sim, porque ombros e pelve têm uma ligação direta, mas isso pode ser algo um pouco mais difícil se vier de surpresa durante o período do trabalho de parto e insistir em ficar ali, literalment
e puxando a pelve para cima. Uma doula experiente sempre massageia ombros quando os vê retesados e isso pode ser fundamental para a fluidez do parto, mas a própria mulher entender em que lugares do seu corpo tende a reprimir espontaneidades é sempre muito eficiente, é de um lugar mais profundo dela mesma, vem da consciência corporal de suas inscrições corporais. O ideal é que a mulher se concentre no seu corpo e ela mesma peça para a assistência relaxar seus ombros ou suas pernas, seus braços ou suas costas. 

A pelve da gestante deve ser solta desde o princípio da gestação. Ao contrário do que se pensa, um parto prematuro não se dá por pelve solta, mas por pelve presa. Pelve solta, respiração livre, profunda, ajuda na fecundação, na gestação saudável e no parto. Ninguém segura bebê prematuro por prender a pelve, por respirar curto. O medo faz parte do universo psíquico das gestantes, o medo é bom quando instiga o autoconhecimento, mas se torna um vilão quando o utilizamos para aprisionar músculos, vísceras e respiração, quando fugimos das questões e das soluções para as questões, quando queremos respostas prontas em linha de montagem para algo que é absolutamente singular, próprio da pessoa com ela mesma.


 O bebê na barriga, ainda como embrião, embora só venha a respirar depois de sair do corpo da mãe, recebe nutrientes e oxigênio que a nutriz proporciona via placenta, a responsável por essa ligação simbiótica. Um ventre livre, que permite uma respiração profunda, tem tudo a ver com isso. Tudo a ver com o tempo que o feto precisa ficar para amadurecer e se sentir bem lá dentro durante o período em que ele necessita dessa internação, tanto quanto durante o período em que ele começa a se exercitar para sair de lá, que começa a surgir depois das 37 semanas e se estica na maioria das mulheres para até cerca de 40 semanas ou um pouco mais, já numa curva descendente e irrevogável.


 Cada corpo traz em sua forma uma história única que se revela na relação simbiótica com aquele bebê ali fecundado. Não é tão fácil quanto parece viver isso, a tarefa mais antiga de nossa história biológica hoje nos surpreende com camadas já profundas de cultura. A entrada avassaladora da cirurgia cesariana, que chegou para salvar a mulher de partos difíceis, de medos invencíveis, inflexíveis, acabou trazendo a crença de que todo parto é em princípio uma tarefa intransponível e que todas as mulheres são incapazes de dar conta daquilo que a maioria absoluta de nossas ancestrais resolvia sozinha ou com ajuda de vizinhas, de mulheres que por terem acesso a seus corpos acabavam virando as famosas boas parideiras, as parteiras de antigamente.

Os medos do parto que sofriam nossas ancestrais não eram tão diferentes dos nossos. Na hora de viver e fazer viver brotava o medo de matar ou morrer, medos familiares, histórias que viram ou ouviram. Isso ainda está presente e pode trazer pânico do jeito que trazia. O pânico sempre esteve presente nos partos difíceis, nos bebês mal encaixados nas pelves retesadas por ombros paralisados, na miscelânea que é o comportamento humano, guiado por hormônios produzidos tanto pelo medo e o amor, como pela alegria e a insegurança. Uma mulher mais alegre, mais segura, mais confiante na sua capacidade de produzir um “bom bebê”, tenderá a produzir hormônios importantes para a efetivação da dilatação e ao sentir os momentos da expulsão deixará seu corpo fluir para a adrenalina necessária, confiando na separação. Mais insegura, mais amedrontada, tenderá a travar alguns músculos importantes, sem consciência enviará ao cérebro mensagens de espera, os hormônios necessários custarão mais a entrar em ação, um excesso de adrenalina tenderá a travar o processo de dilatação em contrações fortes no sistema muscular, mas ineficientes do ponto de vista do sistema límbico, o que pode retardar a dilatação. Para cada uma dessas coisas existem hoje diversas soluções, desde que a assistência entenda o que se passa com aquela mulher ali naquele momento, mas o ideal é que ela mesma tenha autoconhecimento para buscar a separação sem maiores delongas e dramas.





Hoje há adendos culturais trazidos pela história da obstetrícia e refinados pela violência obstétrica que podem interferir nos medos, nos sentimentos, na ambivalência e consequentemente na dança hormonal de um parto, mas também hoje conhecemos o corpo feminino com muito mais propriedade para além da intuição e dos estereótipos de boas parideiras ou mulheres ruins de parto.
Hoje, toda mulher que deseja parir pode adquirir seu autoconhecimento via corpo, que é por onde se dá o parto e ter uma gestação e uma expulsão muito mais prazerosa do que as suas ancestrais recentes, que não dispunham de tecnologia e nem de pré-natal. Os saberes, os exames, a possibilidade de um atendimento emergencial de ponta estão sendo usados para amedrontar as mulheres, mas justamente eles poderiam ser interpretados e utilizados para dar mais calma e segurança às gestantes e parturientes.

O parto hoje pode ter no hospital e nas maternidades uma referência para aquelas mulheres que têm dentro de si uma desconfiança muito profunda de suas capacidades biológicas natas, é sem dúvida nas instituições bem equipadas que se deve ter um parto de alto-risco e partos de alto-risco podem ser diagnosticados via pré-natal. Para as mulheres saudáveis, com pré-natal que diagnostica gestação de baixo-risco as casas de parto chegam para trazer um novo aval social e político, um meio de campo entre o domiciliar e o hospitalar. O parto hoje pode voltar para casa em paz, com segurança, como evento familiar mais amoroso e íntimo porque de fato o parto é da mulher e efetivamente se ela sente que pode parir, ela vai parir livre dos dramas existenciais e consciente do corpo que ela sente como seu, bem vivo e relaxado, bem apto.





Se o corpo mais arrendondado e macio consegue naturalmente uma dilatação porque pertence a uma mulher que chora com mais facilidade e tem um contato mais direto com seu sistema límbico, talvez ele precise apenas de um equilíbrio maior no sistema muscular para ativar as contrações. Se ao contrário, a dona é de um corpo muscular, quadrado, provavelmente vai ter nas contrações o seu potencial mais forte e o trabalho da doula durante o trabalho de parto será o de acessar o corpo arredondado dessa mulher, porque somos perfeitas e temos tudo dentro de nós, temos todas as possibilidades, algumas dificuldades e elas estão aí para serem decifradas. O ideal é que nós mesmas façamos as escolhas, o mapeamento só nosso de nossos corpos para que a assistência seja cada vez mais assistência e menos centro, mais figurantes na hora do parto, acompanhantes. Isso vale para doulas, que não devem “ter doulandas”, nem “minhas gravidinhas”. A semântica também importa, a semântica tem seu papel cultural e social repressor. Todo cuidado é pouco quando o foco é a libertação.
Trabalhar com a humanização do parto é um desafio para as vaidades femininas. As parteiras, as doulas, as terapeutas que trabalham com gestantes ficam muito alegres quando uma gestante consegue parir, sentem-se parte da história, recebem agradecimentos. Tudo é válido, há valores nesse trabalho nesse momento histórico, mas aceitar a coroação, gozar na mitificação é um erro grave para a real libertação das mulheres.
Em nome disso eu sou a chata do grupo de gestantes e tentantes toda quarta-feira no Solar do Caminho. “Sente o teu corpo, nada sei sobre ele que não tenha que vir de ti, por ti e para ti, todos os teus segredos são revelados pela tua atenção ao teu corpo, aos teus sentimentos, não olha agora para tua companheira aí do lado, não imita o gesto dela, busca a tua essência, a tua voz, o teu jeito, te concentra nas tuas dificuldades e nas tuas facilidades, elas serão teus guias.”

Desmistificar todas as camadas culturais a respeito do parto começa na desmistificação dos profissionais que trabalham na assistência e deve culminar na alegria reinante de um mundo em que a maioria das mulheres vai tomar esse ato para si de volta. Sim, de volta, porque já fomos capazes, não estaríamos aqui se nossas ancestrais diretas não tivessem salvado e se salvado na luta pela sobrevivência, a mais básica das lutas humanas. Ninguém nos roubou o parto, nos deixamos roubar, estamos tão perdidas que nos deixamos violar, violentar em um momento só nosso, tão perdidas que muitas passaram a acreditar que a cirurgia é mais segura e menos indolor. Quando passamos a acreditar na fragilidade dos nossos corpos femininos, matamos o melhor do masculino em nós e trocamos seis por meia-dúzia. Bradar contra resolve metade dos problemas, a outra metade é enfrentar a gatinha birrenta que domesticamos e aprisionamos dentro de nós.
E finalmente, é importante pontuar: não existirá na face da Terra uma verdadeira revolução feminista sem que o feminino em nós tenha sido abraçado em toda sua grandeza. Nossa força no mundo do trabalho inclusive, em qualquer profissão, é feminina. Nosso gozo, nosso desejo, seja por homens ou mulheres, é feminino. Quando reprimimos o feminino em nós, perdemos o melhor do masculino em nós e não o contrário.

2 comentários:

  1. Muito boa leitura! Gratidão eterna por compartilhar seus saberes! Um grande abraço!

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  2. Grata mais uma vez. Vim aqui matar a saudade da Cláudia, dos conhecimentos, e tomar inspiração para uma caminhada minha. Forte e apertado abraço.

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