sexta-feira, 30 de maio de 2014

Síndrome de Estocolmo na Obstetrícia

Cláudia Rodrigues

A maior pesquisa sobre nascimento no Brasil, realizada pela Fiocruz, acaba de atestar que 70% das mulheres brasileiras ao engravidarem afirmam ter preferência pelo parto normal, via vaginal. Elas inicialmente sabem que é melhor para a mãe e para o bebê e defendem essa ideia, mas ao iniciarem o acompanhamento com os obstetras mudam de opinião. O índice de cirurgias chega a 80% na rede privada e 56% no SUS, ambos bastante altos segundo recomendação baseada em estudos de real necessidade de cirurgia pela Organização Mundial de Saúde. https://www.youtube.com/watch?v=GzL4OefybbY 

O índice de cirurgias, segundo a OMS, deveria ser em torno de 15%, não muito mais do que isso, mas é possível ser bem abaixo. Em uma pesquisa no ISEA, em Campina Grande, os índices de cirurgias estão abaixo de 8%. https://www.youtube.com/watch?v=T_c9FwVlVw4 . Segundo a coordenadora do projeto de humanização, a obstetra Melania Amorim, o trabalho atingiu índices tão baixos apenas seguindo as recomendações da OMS, que incluem respeito ao desejo da mulher, permissão de acompanhamento, posição e movimentos livres durante o trabalho de parto e uma equipe humanizada, que usa o tempo a favor do desencadeamento natural e seguro do parto, com consolos para a dor, sem episiotomia e intervenções desnecessárias que foram introduzidas pela obstetrícia nos últimos anos e hoje se sabe, foram baseadas em crenças, como a manobra kristeller, empurrar a barriga, assim como a posição em decúbito dorsal, a mulher deitada, que é confortável para a assistência, mas contraria as leis da física, dificultando o parto.

Mas o que vale aqui é a discussão sobre a defesa da cesariana, muitas vezes feita pelas próprias mulheres que não passaram pela experiência do parto. É comum nas redes sociais as batalhas verbais entre ativistas do parto humanizado, críticas aos sistema obstétrico vigente e as mulheres mães de crianças nascidas via cesariana. Tornaram-se populares as frases como "não sou menos mãe porque não pari", "o importante é que meu filho está bem, não a forma do parto", " meu play sexual está em ótimo estado, já o seu deve estar todo arregaçado", " o médico é que sabe, não vou colocar meu bebê em risco", "parto é uma coisa das cavernas, eu sou uma mulher moderna".

Essas frases nasceram da costura cerebral feita entre médicos e pacientes em consultórios, agora fica evidente que há uma certa Síndrome de Estocolmo no ar  http://desciclopedia.org/wiki/S%C3%ADndrome_de_Estocolmo. Elas foram cativadas por seus médicos e não enxergam suas perdas, nem mesmo aquelas que tiveram bebês internados por nascimentos agendados. Outra frase comum é que "uma vez cesárea, sempre cesárea", obviamente essa crença, derrubada por várias pesquisas, também nasceu nos consultórios, já que hoje se sabe que a cada cesariana aumentam os riscos para a mulher e para o bebê, especialmente quando agendadas. Um parto natural após uma cesariana continua sendo mais seguro, inclusive não é recomendável por nenhum obstetra, nem mesmo os mais cesaristas, que uma mulher tenha mais do que quatro filhos nascidos de cesariana porque os índices de riscos vão às alturas. Parir, entretanto, não tem contraindicação para número de filhos.

Quando uma cesariana eletiva é feita e o bebê é internado, a assistência não reconhece isso como iatrogenia, as mulheres são levadas a pensar que o bebê era frágil, que ela e o bebê iriam morrer se a cesariana não tivesse sido marcada, mas o fato é que o bebê foi retirado antes da hora com mixórdias como "o cordão enrolado, está muito grande para nascer de parto normal, sua bacia é estreita". Enfim, por incrível que pareça, a obstetrícia brasileira se transformou em uma propagadora de crenças que atentam contra a saúde.

Do ponto de vista psicológico há um problema gigantesco e de difícil resolução porque a figura do médico é muito mitificada em nossa sociedade e ao longo dos anos o parto acabou sendo considerado não mais um ato fisiológico, mas uma espécie de doença de alto risco. Os médicos e maternidades, especialmente do sistema privado, vendem essa ideia literalmente e as mulheres compram e divulgam isso desde a década de 1960, passando de geração para geração temores infundados sobre aquilo que deveria ser o trabalho prazeroso de parir.

O pior aconteceu também nos SUS em períodos anteriores, que agora a Rede Cegonha tenta reverter a duras penas. Mulheres adeptas do Sistema Público de Saúde, por escolha ou falta de opção, começaram a reivindicar cesarianas e durante os últimos 30 anos os índices de partos naturais perderam muito em qualidade e quantidade. Recentemente os índices de cesarianas no SUS começaram a ser reduzidos e hoje a luta é por um atendimento mais qualificado e humanizado. O SUS está à frente desse processo de retomada de consciência e de direitos femininos, mas o estrago foi grande.

A cesariana retira da mulher o trabalho- mais ou menos doloroso, dependendo do estado psíquico da parturiente- e o prazer, que sempre existe, no ato de parir. Sem trabalho e sem prazer, com riscos de saúde aumentados para a dupla mãe/bebê, prosperam as cesarianas desnecessárias entre as brasileiras, cativas do sistema obstétrico, de seus médicos, que deveriam ser guardiões da saúde.

Se a mulher hoje em dia chega a um consultório com medo da dor, com medos que já trouxe das últimas gerações, de tanto ouvir as frases acima, ela certamente será uma presa fácil para o sistema obstétrico em questão. Se ela chega determinada a ter um parto natural e sem medo da dor, ainda terá que enfrentar discursos muito convincentes a favor da cesariana e isso já dificulta a chegada ao parto, afinal, quem vai teimar com o doutor, quem achando que vai colocar seu filho em risco de vida, segundo o doutor, vai arriscar confiar nas pesquisas dos estudiosos da humanização do parto?

Muitas ativistas reclamam que chegam a ser expulsas de consultórios quando levam estudos sobre a segurança do parto natural. Algumas delas sucumbem e preferem o lugar de vítimas do sistema obstétrico. Abrir mão do prazer e da responsabilidade de parir, abrir mão de atestar com os próprios olhos que teve na barriga alguém simplesmente capaz de nascer e vencer na luta pela sobrevivência acaba parecendo apenas uma vaidade, diante do conforto ilusório de sucumbir à Síndrome de Estocolmo armada pela obstetrícia.

 * jornalista e terapeuta reichiana, ministra em todo Brasil oficinas sobre parto e nascimento e mantém um grupo de movimento corporal semanal no Espaço Solar do Caminho, em Porto Alegre. O grupo está até agora com 100% de nascimentos por parto natural.

Um comentário:

  1. Ola, Claudia. Parabéns pelo trabalho. Adorei este post.
    Paula silveira, doula.

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