terça-feira, 19 de agosto de 2014

Adultos infantilizados X crianças birrentas

Cláudia Rodrigues  

Um dos exercícios que fizemos hoje na oficina Inscrições Corporais, no Solar do Caminho, em Porto Alegre, foi o de remeter o adulto ao seu corpo de dois anos. Por meio de exercícios que "imitam" o que se passa no corpo do bebê entre o primeiro mês e o segundo ano de vida, o adulto sentiu na pele o quanto o bebê se esforça desde o nascimento para um "acordar-se" para a vida.


No caso o que tratamos
 foi acordar o adulto para a importância de atender bem essa fase, de maneira emocionalmente segura e cognitivamente eficiente.


O acordar do bebê para vida começa pela ligação ao peito da mãe ou pela mamadeira, a busca do alimento o salvará, ele vive isso, ele pulsa para a vida. Já lutou para nascer ou nasceu por meio de cesariana e pulsa em direção a essa novidade de viver no ar.

Sai do seu lugar de peixe, passa um bom período evoluindo no seu lugar reptiliano, adquire a capacidade de rastejar, engatinhar, parar em pé, passa a ouvir e decodificar sons. Antes disso, por volta dos quatro meses, desenvolveu seu olhar para longe, passou a ver a copa das árvores ou topo dos prédios, coisas que antes apareciam difusas para ele, desfocadas.

Por volta de um ano, um pouco antes, um pouco depois, ele para em pé sem apoio e começa a dar os primeiros passos. É uma grande vitória, depois de muito esforço.

Costuma chegar aos dois anos ávido por prazeres com seus braços e pernas, olhos, ouvidos, olfato, paladar apurado para a variedade de alimentos que experimentou. Vai pedir o que conhece, estará embasado no que conhece, no que foi oferecido a ele nesses primeiros dois anos de vida.

O filhote humano aos dois anos é capaz de muitas coisas, de quase tudo o que sonhou. Ele vai querer saber mais, lutar para se desenvolver mais e melhor, mas os últimos dois anos foram de uma evolução intensa e rápida. De movimentos involuntários, ele chegou a uma alta capacidade de ser locomover, é muito capaz, merece se divertir, movimentar-se, explorar a casa, o pátio, os parques. O bebê de dois anos é um pesquisador, completou sua graduação em pesquisa do desenvolvimento de seu próprio corpo.

O mestrado é entre 2 e 4. Ele vai exigir mais dos seus orientadores, agora já não se contenta em ser orientado apenas para fazer coisas, ele começa a pensar de maneira mais elaborada, ele tem ideias próprias. Algumas dessas ideias podem parecer absurdas para os adultos, ilógicas e não são raros os cabos de guerra, as seduções, ameaças, insultos, castigos ou as tais dinossáuricas palmadas, que estabelecem uma relação escravagista com a criança.

Tudo o que ela quer e precisa para ficar bem, sem ataques, é que o adulto seja mais inteligente do que ela. Quando uma criança entre 2 e 4 anos teima com um adulto e recebe de volta apenas um não, ela se desespera e não consegue explicar suas razões. Ela ainda não tem desenvolvimento cortical suficiente para raciocínios elaborados por meio da argumentação complexa a ver com as necessidades dos adultos.

Quando uma criança escolhe uma roupa de verão para usar no inverno e seus cuidadores têm dificuldade de convencê-la a colocar uma roupa mais adequada, costumam ficar teimando com argumentos de adulto, explicam sobre o clima e muitas vezes isso vai irritando ainda mais a criança. O ideal seria que antes de explicar o adulto tentasse receber a criança e sua fantasia, que talvez fosse algo como, "hoje sonhei que estava na praia, acordei com calor, lembrei dessa roupa e decidi colocar". Mas a criança não consegue narrar com 2, 3 anos, dessa forma, para argumentar com um adulto, especialmente se o adulto já estiver surtado, insultando a criança. De qualquer maneira, tentar seduzir, induzir, convencer, nem sempre evitam a crise.

Bater, gritar e insultar obviamente também não seriam soluções inteligentes e promotoras de um bom desenvolvimento cognitivo e emocional das crianças.

A única coisa que a criança quer realmente é ser compreendida, desabafar isso de alguma forma, antes de sucumbir ao entendimento da lógica adulta e fazer o que precisa ser feito. A criança entre 2 e 4 anos luta por sua autonomia e contra a submissão. Ela pode compreender os limites, respeitá-los, fazer a sua parte, pode chegar muito bem ao final dos quatro anos, mas vai ser mais difícil se tiver sido uma luta inglória, se foi impedida de se desenvolver: provocada, desafiada, insultada, ameaçada, estapeada, surrada, seduzida.

Apenas porque nessa fase o primordial para ela era justamente sentir-se mais capaz em sua autonomia.

Os adultos pais de crianças entre 2 e 4 anos precisam ser apenas mais inteligentes do que seus filhos, não para manipulá-los, mas para compreendê-los e a partir dessa compreensão, dar continuidade ao relacionamento, que aliás agora pode ser um pouco mais democrático do que entre 0 e 2 anos. Entre 2 e 4 anos a criança que foi respeitada em suas dificuldades e frustrações, consegue e aprecia cumprir regras simples, esperar por uma comida, brincar por mais tempo sozinha ou com outras crianças. Aos 4 anos já evoluiu bastante sua linguagem, consegue argumentar, se interessa muito pelo mundo, faz perguntas, está apta ao final desse período para elaborações mais profundas. Já não apenas imita e faz, ela agora produz e tem senso de sua produção: desenha, algumas já se interessam por letras e palavras, elaboram pequenas histórias orais, teatros, são capazes de criar canções e letras espontaneamente, têm imaginação fértil, viver é um estado lúdico permanente.

Cabe aos adultos, diante da criança que tenta imitá-los, evitar regredir e entrar em competição para ver quem é o mais forte, evitar cair no drama de infantilizar-se diante da evolução natural da criança. O adulto que xinga, teima, barganha, ameaça, insulta, seduz,
está recorrendo ao seu corpo infantil, incapaz de dar conta de alguém que, inacreditavelmente, cresceu e precisa um outro status de relacionamento.

Um comentário:

  1. Adorei o texto! Muito bom pra refletir, quebrar paradigmas e crescer junto com os nossos filhos.

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