Cláudia Rodrigues
Passamos a vida a partir dos 40 anos em sofrimento com os primeiros sinais da idade, dos desgastes corporais. Somos ensinadas que cuidar da aparência é cuidar da autoestima, que não cuidar da aparência é não gostar de nós mesmas e assim vamos nos aprisionando bem quando a vida nos oferece maiores possibilidades para experienciar liberdades maiores e mais intensas, que têm sim a ver com um certo despir de vaidades, com outros gozares.
Se existe satisfação no culto à beleza, e eu tenho dúvidas para qualquer idade, embora na juventude o espelho nos encante e nos embale em ilusões narcisistas com muita propriedade, ela certamente é falsa conforme envelhecemos. Espelhos não mentem, mas podem ser libertários. Cultos excessivos à beleza, especialmente os mais drásticos, que envolvem cirurgias para reverter o processo de envelhecimento, escondem um medo humano que foi extremamente reforçado pela sociedade patriarcal.
De repente, talvez não tão de repente, ficamos mais livres do fardo da beleza. O espelho nos permite, ele praticamente implora: saia daqui, vá viver livremente e me deixe em paz, vá se divertir antes que seu tempo acabe nesse mundo.
As pessoas em geral, homens e mulheres, podem até se referir a nós como bonitonas, mas nós sabemos que esses comentários não têm exatamente a ver com a aparência, mas com nossos conteúdos, com o que temos a fazer, dizer e dar e como isso fica além do acúmulo de experiências, um processo constante de movimentos, não há necessidade de esforços maiores. Onde estava a mecha do seu cabelo no momento em que você deu aquela bola dentro é o que menos importa. Como você se sai daquela bola fora pública que você deu, é o que mais importa. O resto é cosmético. Esperança é a última que morre para jovens, para nós, mais velhas, experiência é a última que morre.
Quando lemos um livro, estudamos ou fazemos um curso, há muitas coisas que já vimos anteriormente, nada parece tão fantástico, assim absorvemos as novidades sem maiores ansiedades.
A volta para casa não é tomada de adrenalina, mas usada para envolvimento real com nossas vidas pessoais e lidas domésticas, que em vez de se tornarem pesadas ou vividas apressadamente para retorno aos livros, estudos ou cursos, são experienciadas como continuidade do todo lá fora. Literalmente não temos tempo a perder com aquilo que não está na nossa frente, aqui e agora.
Uma roupa é apenas uma roupa. Não há mais necessidade de chocar indo a um casamento com um jeans ou gastar horas cansando as varizes para encontrar o vestido mais lindo da festa. Não é mais necessário fazer força para agradar ou chocar, a vaidade vive, mas em um lugar mais confortável dentro e fora de nós. O salto pode ser mais baixo ou nem existir porque o importante é poder caminhar bem e até dar uma corridinha. Nada deixa uma mulher mais velha feliz de fato do que poder descer e subir uma escada em passinhos rápidos, na ligeireza. Ô benção!
O passado existe, não podemos nos livrar dele, é um senhor conselheiro sobre as piores horas de nossas vidas, tanto quanto as melhores. Prêmios, aplausos, fracassos e desilusões nos fazem lidar melhor com prêmios, aplausos, fracassos e desilusões. Nada assim muito Augusto dos Anjos, mas talvez mais Brecht.
Sabemos o que fazer diante de uma criança com febre, dor, com piriri de criança, sabemos o que dizer para um amigo doente ou para alguém que está triste, podemos consolar e acolher sem medo de contaminação. Já não tememos a morte nem esperamos da vida mais do que ela já pôde nos dar. Chegou a hora do que vier é lucro. Tipo mais um dia bem vivido, o de hoje. O que tiver que vir, virá, já vivemos o bastante para saber que sonhos mudam para planos e planos modificam sonhos, sociedades acabam e talvez por isso mesmo conseguimos cuidar melhor de cada sonho que vira plano e brota, novinho em folha. E eles brotam, vivendo bem e fazendo as coisas com afeto, sonhos viram planos e se realizam em constante movimento de ir e vir.
Não importa quantos foram os cremes que usamos, nossa pele adquire rugas. Ficamos livres dos cremes, já sem culpa de não usá-los. A velhice não se evita mais depois que começa a ocorrer, os cremes limitam-se geograficamente a locais mais secos pela sensação de secura, não como anti-rugas. Os cabelos, que pintávamos para ter uma cor diferente, adquirem a melhor das cores, a prateada. Já vêm assim com luzes, reflexos, naturalmente, sem fazer força alguma. E é um processo ótimo, sempre em movimento, de um ano para outro eles pintam-se naturalmente em mechas divertidas. Sozinhos! E claro, caem menos.
Crianças em birra, que coisa fácil de lidar. Nós compreendemos as crianças, elas nos encantam com suas vozes, choros, falares e pensares. Elas pedem só mais um embalo no balanço, só mais uma brincadinha e nós rimos e fazemos o que elas querem só para vê-las sorrir. E se não dá, se não dá mesmo, nós conseguimos a comunicação exata para convencê-las que acabou por hoje e que sentimos tanto quando elas. E sentimos mesmo, por isso dá certo.
Somos menos fortes fisicamente, por incrível que pareça isso torna tudo mais leve, desistir do esforço é de uma leveza sem tamanho. Enxergamos menos, especialmente de perto, assim, além de não vermos os defeitos alheios, não enxergamos muito bem os nossos próprios. Os pelos já não existem com vigor, logo estamos livres da depilação ou a fazemos só para dar um tapa no visual. Nossa audição diminui, adquirimos o famoso ouvido seletivo. Só entra o que for bom de ouvir, o que faz sentido, o que nos leva a associações.
O sexo perde em performance o que ganha em conteúdo. Nunca a arte de agradar foi tão forte como promoção do próprio prazer. É só sentir, nada a apresentar, nada a representar. E depois dormimos, feito homens, sem carências, sem discutir relação. Ô bênção! Crianças, bichos e plantas nos fazem sentir êxtase. Literalmente perdemos a noção da hora sentindo a vida em nossas mãos. Ela está a escorrer, mas ainda a temos, ainda podemos e sentimos que não devemos desperdiçar essas oportunidades de renovação, de contaminação com as purezas essenciais da vida.
Sim, podemos usar um short no verão e sair pela rua livremente. Os machões não vão nos incomodar com suas piadinhas. Desejamos que o machismo seja exterminado, já fomos jovens, sabemos da força destrutiva da sociedade patriarcal, mas também dela nos sentimos livres. Estamos livres das belas pernas, temos apenas pernas que sentem calor.
É verdade que não temos mais tantas certezas, a vida não cabe numa equação matemática, não se restringe às evidências científicas, as surpresas estiveram sempre presentes, para o bem e para o mal, assim que perdemos a ilusão do controle. Também não sentimos tantas vergonhas, nem tantos medos e receios. Os limites ficam mais claros, o que vem de dentro se sobrepõe ao que está fora, ganhamos novas fronteiras, nosso ser se agranda sobre o nosso parecer, como se finalmente tivéssemos compreendido que não podemos fugir de ser o que somos. Curioso até porque não se busca ser maior, perdemos a ilusão de ser muito mais em substituição a apenas ser o que se pode ser intensamente.
Há muitos sofrimentos no mundo dos bem grandes e muitas pequenas infelicidades desnecessárias. Sabemos que um bom livro ao pé da cama sempre nos trará consolo para que o não podemos mudar e sonhos para melhorar as coisas que até hoje não vingaram.
Não sabemos tudo, não vivemos tudo, mas somos finalmente mais livres para continuar. #avidapassadepressaproveitatua
MARAVILHA DE TEXTO!!! adorei..
ResponderExcluirEnvelhecemos dentro de nós a cada instantes que pensarmos estar velhas e não com sabedorias e experiências, me sinto com 30
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