Memórias em construção constante
Cláudia Rodrigues
Depois de uma tarde de andanças no centro ela senta ao meu lado e em frente ao pai no banco do ônibus, suspira e exclama com evidente alegria e sobra de energia: "Como eu gosto de vir ao centro da cidade!"
"Nós também", respondemos de imediato.
E o resto da viagem foi povoado pelas memórias do centro.
Teve o primeiro dia em que a levei ao Café Haiti e contei que aquele lugar era muito antigo, conhecia-o da versão anterior, mas antes da versão da minha época, ainda houve outra versão. Olhamos as fotos de todas as versões e mostrei a ela o que ainda era muito semelhante, o clima da "lanchonete". Ela pergunta mais e mais, comentando com sua natural neutralidade. Ela, que também vai ao shopping, como qualquer adolescente.
Coloca limites quando implico com os prédios envidraçados, acha que exagero na paixão e me mostra a razão admirando com tanto gosto as construções antigas. Retruco, falo do espaço e da qualidade.
Ela argumenta sobre espaço e número de pessoas. Xeque-mate.
Aos cinco anos conheceu a Casa de Cultura e o quarto do Mario Quintana, mas o que rendeu a conversa foram suas perguntas e reflexões sobre os artistas que pintavam quadros na rua e os quadros dos artistas do museu. Não deixou por menos ao dizer que os quatros dos pintores podiam ser tanta poesia quanto o Mario Quintana era um pintor com palavras. Ganhamos nós dois mais uns 10 anos de vida ao ouvir isso daquela figurinha de apenas cinco anos. E não havia vaidade alguma em suas palavras, ela não tinha exata noção do que dizia e nem entendeu nossa alegria.
No centro tem tudo e de tudo, é lugar dos super-incluídos e dos excluídos, de toda gente que não idolatra qualquer tipo de pasteurização. As pessoas vêm dos arredores para vender seus produtos. O mercado recebe alguma coisa, no mais ficam por ali vendendo para os passantes. O comércio é a mistura original dos imigrantes. Árabes, portugueses, espanhóis, africanos, asiáticos e mais os chegados do interior e de todos os estados brasileiros. Só o centro é uma amostra da inteireza da cidade e foi ali que tudo começou.
Dessa última vez comprei duas mangas doces e suculentas que não existem no Zaffari.
Um centro higienizado só com mangas do Zaffari, repleto de carrões e sem espaço para as pessoas é um projeto de insegurança pública. A gentrificação pode ser grande, mas não pode atingir o cérebro público da cidade. E aí todo cuidado é pouco.
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