quarta-feira, 19 de agosto de 2009

O sol do nascimento

Por Cláudia Rodrigues

Para Helena, que tenha lindos dias na face da Terra

Até o início dos anos 1940 a maioria das crianças vinha ao mundo em suas casas. Como até hoje e como sempre será os bebês saudáveis, filhos de mães saudáveis, nasciam sem intercorrências e passavam bem.

Bebês cardíacos ou com problemas graves de saúde, assim como parturientes doentes, não sobreviviam, mas a maior taxa de mortes tanto das mulheres quanto dos filhos, estava associada a infecções. O chamado mal de sete dias, o tétano, também ocorria, e ainda ocorre, pela higienização inadequada no trato do umbigo. Famílias melhor informadas sobre os cuidados de higiene dificilmente eram atingidas pelas infecções. Cerca de 2% das mulheres apresentavam placenta prévia e se o bebê não fosse retirado via cirurgia, morriam ou perdiam os bebês. Menos de 1% das mulheres que sofriam de herpes genital ativa na hora do parto, também faziam parte da lista negra para o parto natural.

Nada disso mudou de forma drástica, exceto que a cirurgia se alastrou e inicialmente salvou muitas mães e muitos bebês. Hoje existe tratamento profilático para herpes genital, o tétano pode ser prevenido e a higienização está ao alcance de uma maioria. Curiosamente aumentou tanto o índice de cesarianas que os índices de mortalidade materna e neonatal alastraram-se novamente. Atualmente é o abuso de cirurgias desnecessárias e infecções hospitalares que mantém altos esses índices.

A cesariana continua sendo uma operação de médio porte e os riscos associados a uma cirurgia de médio porte continuam existindo, mas o êxtase de salvar vidas de uma pequena porcentagem de mulheres e bebês que não se salvariam sem ela levou-nos a acreditar que ela era mais segura do que o parto natural também para mulheres e bebês saudáveis. No Brasil o sucesso da cesariana ganhou uma maioria de adeptos, tanto entre a classe médica, quanto entre as mulheres. Em torno dela nasceram mitos, como o de ser um meio de trazer o filho ao mundo sem dor e sem sofrimento algum para o bebê ou para a mãe. No sistema privado de saúde os índices de cesariana beiram os 90%, no público variam entre 35% e 65%. A OMS considera plausível que 15% dos partos possam acarretar em cesariana, mas num projeto científico de humanização do parto feito em Campina Grande, Paraíba, sob a coordenação da obstetra Melania Amorim, atualmente fazendo um estágio na OMS, o índice de cesarianas foi de 8% ao final de dois anos de desenvolvimento do projeto.

Para os médicos a cirurgia é mais prática. Eles não têm que acompanhar a gestante em longas horas de trabalho de parto. É também mais rentável. Cirurgias de várias clientes podem ser marcadas para um sábado, sem interferir no dia-a-dia do consultório, cirurgias não atrapalham férias e num tempo de 18, 20 horas de trabalho de um único parto podem ser feitas várias cesarianas.

Algumas mulheres também preferem adequar os nascimentos de filhos às suas agendas, em vez de adequarem suas agendas aos nascimentos. É o mercado de nascimentos e como tudo o que faz parte do mercado, do status quo, há um verniz de proteção que falseia dados estatísticos com o foco voltado para os problemas e totalmente desvirtuado das novas soluções sob a luz da ciência.

O aumento no índice de cesarianas no Brasil não se deve apenas ao novo olhar que surgiu após a década de 1940, que trouxe a salvação de algumas vidas, que supostamente estariam destinadas à morte. Isso é forte, difícil de processar e só essa minoria que realmente nasceu ou precisou ter os filhos via cesariana é que pode entender o significado dessa evolução da medicina. O aumento se deve também pelos maus tratos destinados às parturientes, que vão do abandono em salas de pré-parto, sem água, sem comida, até a posição de litotomia, a mulher deitada na hora da expulsão.

Complicadores do parto contemporâneo são ainda as intervenções dolorosas, como a manobra de kristeller, a epsiotomia e a necessidade institucional de acelerar o trabalho de parto com medicamentos que muitas vezes boicotam o parto, transformando-o em uma experiência traumática ou em cesariana depois de várias horas de indução.

Na contracultura dessa realidade, com uma visão nova sobre o nascimento e o tratamento ao recém-nascido, começou a ressurgir no Brasil no final da década de 1980, o parto em casa. Ele não resgata o parto das antigas, não há parteiras gritando para que a mulher empurre o bebê, conta-se com pré-natal moderno e até, em alguns casos de partos demorados, com um aparelho, o sonar, para verificar os batimentos cardíacos do bebê. A parturiente é bem tratada, pode alimentar-se, beber água, dançar, sorrir, cantar, decidir o que fazer durante o trabalho de parto. O parto em casa de hoje não é evento dramático, que supostamente e em princípio, vai matar o bebê se a mãe não fizer força. Ela é estimulada a entregar-se aos puxos e ninguém a não ser ela mesma sentirá e parirá lentamente, com suavidade, alegria e prazer.

Principalmente pode optar pela posição mais confortável na hora de parir: de cócoras, ajoelhada, em pé, de quatro, dentro de uma banheira com muita água, mas dificilmente é deitada e nunca, nunca uma mulher em trabalho de parto pede que amarrem suas mãos ou seus pés, como é feito de rotina nos hospitais.

As diferenças entre um parto natural em casa “das antigas” e o de hoje são muitas. Antigamente não era possível que um pré-natal contasse com tantos dados. O filho na barriga era um mistério, o único equipamento para escutar o coração do bebê era um cone, não eram feitos exames de sangue e a ultrassonografia não existia. Em contrapartida a mulher confiava mais em sua capacidade de dar à luz, ela não tinha saída a não ser confiar em seu corpo, alimentar-se bem e temia ter que sofrer uma cirurgia, havia essa consciência, era considerada uma operação de riscos.

Infelizmente os problemas para se conseguir um parto digno e prazeroso vão muito além da falta de consciência da mulher sobre o histórico do parto no Brasil ou sobre o que a espera numa maternidade, mesmo quando é cara, especialmente quando é o plano de saúde que cobre os gastos. Ela tem que escolher entre se submeter a um parto forçado de mil e uma maneiras ou a uma cirurgia desnecessária, muitas vezes feita sem o critério fundamental de esperar a hora do bebê, a hora em que ele está maduro para nascer, o que só é evidente num franco trabalho de parto.

Para algumas a saída está no parto domiciliar muito bem assistido por profissional humanista, não invasivo, receptivo, que diariamente está disposto a perder mais uma camada de pele do narcisismo humano, sempre tão fortalecido pelas relações tecnocráticas. E essa delícia, é claro, não é para aquelas que se deixaram engolir pela triste trajetória da mercantilização da medicina, não é para aquelas que desconfiam mais do que confiam no poder de seus corpos aptos para literalmente darem à luz.

Esse texto dedico a uma amiga muito especial que deu à luz em casa, cantando durante a madrugada de hoje, ela recebeu a filha numa linda gargalhada de prazer e está nesse momento tendo o prazer de viver e de ajudar a viver com seu corpo inteiro.

Um comentário: