sábado, 8 de agosto de 2009

Em suas mãos

Por Cláudia Rodrigues

Mais um bebê abandonado no Brasil. Dessa vez a mãe deixou numa caixa de sapatos, teve o cuidado de enrolar o recém-nascido de dois dias, último de quatro filhos, antes de partir. Questão de sobrevivência, já não consegue alimentar e cuidar dos outros três rebentos; num ato de desespero deixou ainda um bilhete pedindo a quem o encontrasse que não permitisse a adoção. O que será que essa mãe pensa que é a adoção? Não se sabe ao certo, talvez ela apenas vincule a palavra adoção à instituição do orfanato, aquele lugar esquisito em que dezenas – ou serão centenas, milhares? – de bebês clamam por afeto deitados em berços de ferro branco. De certa forma está certa, de qualquer maneira arrependeu-se e pediu o filho de volta, agora que ela mesma já pode pedir socorro publicamente. Tarde demais, o bebê foi recolhido, está na tal instituição que a mãe imaginara como a pior das possibilidades. Ela responderá ao processo em liberdade, já que não houve flagrante. Será que ela sabe o que é flagrante?

O Brasil maluco dos bebês abandonados, das mães que não conseguem fazer a soma do salário mínimo pagar fraldas e sabão, aluguel, tempo de atenção, energia elétrica e água, é imponderável, já que é impossível com um salário mínimo sustentar mais de três filhos dignamente. E nesse dignamente não cabe, claro, qualquer ida ao cinema, brinquedos, direitos, dentista, nada desses luxos, só permitidos àqueles que seriam os escolhidos por Deus para ter uma vida melhor: os ricos, estudados, nós, o resto minoritário que trabalha culpas nos consultórios terapêuticos.

No mesmo país, onde abundam mães que não sabem o que fazer com uma xícara de arroz e uma colher de açúcar, quando faltam ainda quinze dias para receber o salário, vicejam também as mulheres inférteis que pagam R$5.000 para produzir vários embriões que serão congelados, entre os quais um ou dois são escolhidos. Os que sobram, bem, os embriões que sobram ainda não sabemos o que fazer com eles. Alguns já não prestam mais para virar gente, de tanto tempo que passaram congelados. Quanto aos outros, os que ainda estão com prazo de validade em dia, pertencem a pais que já estão satisfeitos com os gêmeos ou trigêmeos que tiveram. A ciência os quer, a Igreja Católica os ignora, a medicina se coloca em cima do muro diante da questão e a população em geral não sabe a diferença entre célula-tronco e célula-tronco-embrionária.

Pensar nessas duas realidades; a das mães que não têm como sustentar os filhos e a das mães que investem fortunas para realizar o sonho da maternidade, é coisa esquizofrênica, é semelhante a que tentam fazer as mulheres que ganham salário mínimo, quando chegam a parir o quarto filho. Não fecha, dói e nos leva a um terceiro buraco: o da adoção.

Pessoas esperam anos numa fila de adoção. As autoridades no assunto explicam que o problema está na idade da criança a ser adotada. Os pais da fila de adoção preferem crianças menores de dois anos, de preferência recém-nascidas, mas os orfanatos estariam abarrotados de crianças maiores. Então, forma-se um círculo vicioso porque crianças, incrível, crescem rapidamente, não conseguem acompanhar o ritmo lento das burocracias e preconceitos que envolvem a adoção.

A ignorância da mãe que deixou o filho na caixa de sapatos, esperando que um casal o adotasse, assim do nada, burlando a justiça, trouxe à baila um caso de amor, ternura, respeito e ilegalidade, que tive a sorte de ouvir narrado por uma das partes envolvidas: a da mãe adotiva.

Uma mãe de três filhos pequenos, muito jovem, desabafou à irmã, que gostaria de doar seu quarto filho, ainda na barriga, revelando que só o doaria, caso conhecesse a mãe adotiva. A irmã, em seu trabalho, desabafou para uma colega sobre a história. A colega surpreendeu-se e contou que a sua própria irmã gostaria de adotar, mas que só adotaria se não conhecesse a doadora. Concluíram que não daria liga e ambas comentaram com suas respectivas irmãs.

Passaram-se sete meses e um dia, num salão de beleza, a ex-futura doadora e a ex-futura adotadora, se encontraram e se reconheceram. A barrigona enorme da possível doadora causou um frio na barriga infértil da virtual adotadora. A grávida mostrou as fotos dos outros filhos, sendo o último um bebê de 18 meses. Suspirou fundo e disse uma frase que tocou o coração da outra: eu estou te procurando faz um tempão, que bom que o destino chegou a tempo, tu és a mãe amorosa que esse filho precisa e eu não poderei dar a ele o carinho que merece. Houve tempo para toques, olhares e lágrimas: a mãe adotiva pôde sentir o filho na barriga da outra, a doadora despediu-se com alívio da criança que não queria criar.

Os pais adotivos correram para comprar o enxoval e se revezaram para atender o telefonema que anunciaria a chegada do bebê. Foram despertados numa madrugada, quinze dias depois do encontro no salão de beleza. Saíram trôpegos, mal lavaram os rostos, rumo ao hospital. Quando a criança nasceu, a mãe biológica a entregou aos pais adotivos minutos depois de um parto normal que trouxe à vida um menino com nota 10 no teste de apgar. A parturiente estava ansiosa para sair do hospital, seu filho de 18 meses ainda mamava e os outros dois, com 4 e 5 anos, estavam em casa precisando de atenção. A mãe adotiva assinou um termo de responsabilidade, tomou posse da documentação que atestava ter o bebê nascido naquela maternidade e partiu com um medo apertando o peito por estar burlando a Lei. Chegou em casa com o recém-nascido e contou a ele tudo o que se passou. Esta é a tua casa, este é o teu quarto, eu sou a tua mãe, te educarei, respeitarei e amarei todos os dias da minha vida. Hoje o garoto é um adolescente, sabe de sua história, ainda não quis conhecer sua mãe biológica, talvez nunca queira, ama seus pais adotivos, os considera legítimos e não acha que foi rejeitado, prefere se sentir um doado para uma vida uma melhor, como de fato foi. É um bom filho, um bom aluno, um bom colega. Foi registrado como filho legítimo, uma ilegalidade. Simples assim. A mãe biológica nunca pediu nada, a mãe adotiva nutre um sentimento de admiração pela biológica. Apesar de viverem numa cidade de interior, com pouco mais de 300 mil habitantes, nunca se reencontraram, mas poderão fazê-lo, se um dia assim o desejarem. Gratidão de ambas as partes e uma ética em que Justiça nenhuma deveria colocar as patas, as burocráticas patas que imoralizam a adoção, deixando-a a margem da realidade.

Ainda não vencemos o tabu primário da adoção, mas estamos à frente de nosso tempo nos laboratórios de reprodução assistida e anos-luz longe de sermos justos sem a legalização do aborto. Essa conta não fecha e não se trata de moralidade ou religiosidade, mas de falta absoluta de um pensamento humanista e minimamente racional.

2 comentários:

  1. Eu fui adotada mais ou menos assim :)

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  2. Eu sou aberta à adoção e isso só me faz sentir cada vez mais capaz de ser mãe...

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