quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Por sorte e merecimento





Por Cláudia Rodrigues

Tami e eu sempre brincamos sobre o sentido das coisas serem por sorte ou merecimento e quase sempre a conclusão é que são 50% a 50%. De alguma forma foi muita sorte para mim Fabiana Higa parir na madrugada de sexta para sábado, ter entrado em TP assim que o avião em que eu estava aterrissou no aeroporto Bento Martins, em Fortaleza. O merecimento já faz parte do sagrado, mas intuo que mereci. Havia chegado fazia pouco mais de uma hora, ainda calçando botas e uma fina blusa de manga comprida, Kelly e eu às voltas pelo centro da cidade a fim de localizar um material indispensável ao Inscrições Corporais e que me recuso a carregar: papel pardo que meça mais de 1,50cm de largura. Kelly preocupada com o horário, já vestida para dar sua aula na faculdade de Direito, quando Fabiana ligou convicta de que estava em TP e não mais em pródromos. Começamos a rir sobre a coincidência, Kelly passou o telefone para mim. Fabiana estava calma, mas certa de que era TP, contrações de cinco em cinco e sim, ela queria que eu fosse, afinal vínhamos conversando por skype nos últimos meses ocasionalmente e nas últimas semanas mais constantemente. Fabiana engravidou logo depois de 12 de dezembro, por coincidência após o workshop Gravidez, Parto & Simbiose e nos últimos dias, já inscrita para o Inscrições Corporais, nutria a idéia de que Nina esperaria o workshop para nascer só depois. Brinquei com ela que como estava “pronta” poderia fazer os exercícios mais puxados, não havia risco de parto prematuro. Nossa fantasia, aparentemente, era um encontro no workshop, mas de qualquer maneira eu pensava em visitar Fabiana caso Nina nascesse antes do dia 18. O que não imaginamos jamais foi que Nina nos reuniria para seu nascimento. Essa foi a única hipótese que não nos ocorreu.
Quando Kelly e eu conseguimos chegar à casa de Fabiana , por volta das 20,30h, Bárbara, a obstetra mais parteira de Fortaleza, já estava lá com seu rosto luminoso, seu corpo leve, ágil, de quem corre vários quilômetros por dia, assim como Socorro, amiga de Fabiana, militante e doula, estreante na prática a presenciar seu primeiro parto. Luana, filhinha de dois anos de Fabi, estava elétrica sentindo o movimento e inicialmente só aceitava a tia Socorro ou o pai, Rodrigo. Depois de algum tempo aceitou a mim também, mas esteve difícil para a pequena separar-se da mãe para dormir. Fomos revezando com Rodrigo, que era a cia favorita da mãe e da filha e que nunca, em nenhum momento, negou seu total investimento emocional a qualquer delas, mesmo não podendo virar dois.Fabiana, apesar de já estar com dilatação quase total, conseguia relaxar completamente mesmo durante as contrações sempre vocalizando com suavidade na expiração. Como ela aceitou minha presença ofereci um exercício de respiração e implantação dos pés a fim de intensificar o processo. Ela aceitou e percebeu que deu certo. Certo demais, dolorido demais. Ela voltou a respirar mais contidamente, mas não era uma contenção do tipo que trava, ela nunca deixava de vocalizar na expiração e sempre, durante todo o TP encontrou em Rodrigo amparo para soltar a pelve. Nunca espremeu-se, nunca apertou a pelve e nem elevou os ombros ou arregalou os olhos. Para regular o medo desintensificava a respiração e com isso conseguia atenuar a sensação das contrações, mas sem parar o processo, Nina estava descendo, a cada ausculta estava mais e mais baixa.

Começou a avançar a noite e o cansaço tomou conta da pequena Luana, já não servia mais divertir-se com tia Socorro e mesmo com Rodrigo estava sensível pedindo pela mãe. Fabiana tentou segurá-la entre uma contração e outra, mas isso não poderia, de qualquer maneira, continuar noite adentro.
Finalmente Fabiana decidiu chamar Aninha que a ajuda nos afazeres domésticos e nos cuidados com Luana. Rodrigo veio resolver com ela, alcançar o telefone, e fui para o lugar dele na cama com Luana; ensinou-me a colocar a mão nas costinhas dela, que isso a manteria serena. Deu certo, adormeci junto. Acordei com Aninha me olhando a dizer que estava ali para ficar com Luana.
Fabiana estava saindo da água com muito frio. Um daqueles momentos difíceis em que toda mulher quer esquecer que está em TP, que se meteu nessa encrenca. Ajudei a secá-la, trocar a roupa, as meninas trouxeram uma camiseta quente, cobrimos seu corpo com uma colcha e então estava assim um pouco mais confortável: pronto Fabiana, você tem o direito de esquecer que está em TP, curta esse calorzinho, beba essa água, vamos deixar tudo parar, o mundo parar, nem que seja por uns instantes.
Bárbara, Kelly, Socorro e eu ficamos na varanda e deixamos Rodrigo e Fabiana no sofá. Alguns minutos depois eles estavam em pé, Fabiana numa sábia posição pendurando-se nele de maneira a soltar mais a pelve. Que intuição, que conhecimento do próprio corpo! Diante da dor das contrações, ela buscava alívio soltando a pelve. Melhor impossível, mesmo quando ela desintensificava a respiração, apesar de eu ver ali um esticamento do processo, era tão nítido que atenuava a dor e então ela me olhou e disse com todas as letras que não queria aumentar a dor e nem “cavar” mais contrações. Todas rimos. O clima alegre era constante, Bárbara fazendo café, depois assaltamos a geladeira incentivadas por Fabiana. E tivemos as broncas! Fabiana não queria que a gente se divertisse demais a ponto de desconcentrá-la e vez por outra, fazia: tschshsh, mas um tschschs bem forte e ficávamos todas em silêncio. Ela não queria música, nem barulho excessivo, ela mandava na gente, em todos nós e nós corríamos para obedecer àquela pessoa extremamente doce, que gemia entregue com doçura a cada contração e que em nenhum momento perdeu a conexão com seu corpo. Nem mesmo segurando Luana entre uma contração e outra, nem mesmo quando falou com Aninha ao telefone: “venha Aninha, por favor, a Luana está precisando de você aqui agora”. Se alguma parturiente pode ser chamada de empoderada, essa palavra esquisita tão utilizada pela militância, essa mulher é Fabiana Higa.
E aí, por volta das 2h estávamos lá, depois de uma ausculta na banqueta, tudo perfeito, dilatação total, bolsa ainda íntegra, Bárbara pergunta sobre o desejo de expulsar, Fabiana diz que não tem puxos, que não vai fazer força porque não vieram os puxos. Bárbara vai esperar no sofá lá atrás discretamente, pacientemente, Socorro e eu na parede ao lado, Kelly preparando a pimenta para o chá. Fabiana estava respirando muito curto para virem as expulsivas, sugeri a ela ampliar a respiração, ela aceitou, aceitou que eu me aproximasse, fui a seus pés, coloquei-os em posição mais implantada, ela voltava a respirar mais curto, eu insistia com o máximo de doçura que me era possível, ninguém merece uma vaca dizendo como devemos respirar nos minutos finais, mas para mim estava claro que os puxos não vinham porque a respiração estava curta. Ela encarou e depois de três respiradas bem cavadas veio o primeiro puxo e pelo som que ela fez Bárbara logo percebeu e se aproximou, assim como Kelly. Continuei incentivando a respiração profunda, Bárbara mostrou algo técnico para Kelly com a luzinha (não entendi bem) Fabiana também não perguntou o que era. Elas falaram que estava tudo bem, Bárbara sugeriu romper a bolsa, Fabiana pediu para esperar a contração passar, Kelly ofereceu o chá, ela bebeu dois goles, eu disse que o bebê estava vindo, que ela continuasse respirando, que agora faltava pouco. Fabiana falou que parecia que não ia sair, nós sorrimos, pedi que continuasse respirando fundo, sem medo; ela lembrava e respirava de novo profundamente e vinha outra expulsiva, mas não forte o bastante. E então Bárbara rompeu a bolsa e muito rapidamente veio uma contração expulsiva que emendou-se com outra e Nina começou a surgir. Fabiana pediu pano morno, pano, pano!
Kelly trouxe, Bárbara sustentou a cabecinha e o corpo veio rapidamente. E ali estavam os três emocionados. Era nossa hora de dar uma sumida para a varanda para que eles curtissem a vigorosa filhota. Um parto natural sem laceração! Hoje ela falou comigo e disse que está de mini-short e com leite a perder de vista.
Lá fora a noite morna do Nordeste, sob o suave balanço das folhas de uma imigrante chinesa chamada Nim, estava estrelada. Para quem vem de um fim de inverno no RS, esse tipo de sensação, de poder colocar os pés no chão sentindo apenas calor, nada mais do que calor, já é o paraíso.
Depois de todas aquelas emoções, daquela honraria de poder acompanhar um nascimento é até para cética crer em Deus ou pelo menos em humanos mais humanizados: Nina, muitísimo grata, existem muito mais mistérios do sagrado que coincidências na tua chegada; Fabiana, gratidão eterna a você, por sua confiança e abertura num momento tão íntimo para uma quase desconhecida. Luana, nunca esquecerei que você quando acordou após o parto para comemorar a chegada da Nina, me chamou de tia Cláudia, você foi demais naquele momento em que sentiu que o bicho estava pegando e mandou seu pai te deixar na cama e ir para a sala cuidar da mamãe, foi muito papo firme, a melhor amiga da mãe e da irmã, a primogênita assumindo seu lugar no clã. Rodrigo, você é o cara, você é o cara, você é o cara. Quantos homens nesse mundo são capazes de sensibilizar-se assim, de ter a casa invadida por um bando de mulheres, de conseguirem se sair bem sendo tão requisitados emocional e fisicamente como você?
Socorro nós fizemos uma bela dupla de doulas sobrantes, como você nos apelidou, e fomos até úteis na medida do possível. Lembra daquele momento ali acocoradas na parede? Parecia que nós é que íamos parir! Adorei os momentos de intimidade com você.
Bárbara você tem a força, tem a luz. Num primeiro momento parece que é pelos olhos, pela loirice germânica, pelo leve sotaque de estrangeira. Depois parece que é pela elegância, a suavidade, a leveza do seu corpo, mas é algo além, é arte, você é artista na profissão de obstetra. E o que era seu rosto normal, igualmente suave no dia seguinte no workshop? Fiquei tão grata por você ter ido, afinal havia passado a noite em claro e tem os filhos crescidos, já longe da fase que estudamos no Inscrições. Fortaleza que te segure e te assegure toda prosperidade que mereces.
Kelly, muito obrigada por tudo, pelo teu sorriso, as trapalhadas de perder as chaves erradas nas horas certas, as questões todas, os papos filosóficos, o seu lugar impecável de anfitriã e saiba que quanto mais você acha que vai surpreender para o mal, mais admiro você, mais você me surpreende para o bem.
Com muito amor e por partes, logo trarei as novidades do workshop. Sim, ocitocina funciona como Reativan (sic) no dia seguinte. Não deixei nem o povo lanchar!

11 comentários:

  1. Deu pra sentir a ocitocina daqui =)
    Obrigada Claudia
    Alaya

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  2. Cláudia, que lindo! Que presente poder participar de um momento tão único, tão especial!

    Beijão

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  3. Que lindo, que tudo, que inspirador!!!
    Vou ao delírio só de imaginar toda a energia dessas mulheres reunidas no maior dos eventos do universo feminino.
    Adicionado aos meus favoritos.

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  4. UOUUUUU! deu até falta de fôlego!
    rsrsrs

    seja bem-vinda, nina!
    ; )

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  5. Muito lindo mesmo! (e o seu relato maravilhoso e com final poético). Parabéns a todos que participaram/ajudaram no processo, de uma forma ou de outra.

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  6. Que texto lindo, de tirar o fôlego!

    Que delícia reviver esse momento na delicadeza e no amor das suas palavras!

    Que alegria e honra fazer parte dessa história!

    Obrigada por tudo, minha amiga, pelo carinho, dedicação, interesse, paciência..

    Também te admiro cada vez mais!

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  7. E eu aqui respirando fundo....
    A Luana da' vontade de apertar, ali dentro da banheira!! Que fofinha!
    E a foto da boca da Fabiana, não a conheço, sou bem casada, mas da' vontade é de beija-la hahahahahahahaha
    Renata

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  8. Ah, você de mangas compridas comprova de que vinha trazendo calor : )
    beijos
    Renata

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  9. Nossa, que coisa linda. É de arrepiar. Um dia eu quero um parto desses pra mim...

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  10. Ai Claudia, que lindo... fiquei emocionada. Bjosss

    Kátia,de Blumenau

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  11. AMADAAA!!!!Desconhecida?? Mulher.....será que se fosse desconhecida assim, tanta MAGIA aconteceria?
    Sim....pois nossa história da gravidez e do dia do parto, definitivamente não é mera coincidência! Chorei, chorei ao ler o relato e lá no fundo do meu ser estou orgulhosa, muito orgulhosa de mim, e de ter vocês, um BANDO de mulheres PODEROSAS neste dia tão importante e especial! Nina é um presente na minha vida! Este parto foi um presente, você foi um presente e seu relato mais um presente!! Quantos presentes!! Grata, muito grata!


    com muito amor e gratidão eterna,
    abraço forte
    Fabiana

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