terça-feira, 22 de março de 2011

Mudei para a cidade do atropelador de ciclistas que...

Cláudia Rodrigues






...é também repleta de árvores nativas e imigrantes antigas: jacarandás, tipuanas, guarapuvus, abacateiros, goiabeiras, pitangueiras, palmeiras, flamboyants, cinamomos, sibipirunas, alfeneiros, salsos-chorões. Seus habitantes têm especial apreço também pelo cultivo de flores. Em pedaços minúsculos de terra no meio do asfalto vicejam gerânios, beijos, beijinhos, azaléias, rosas, margaridas, petúnias. As flores não definem status social ou econômico, aparecem nas janelas humildes tanto quanto nos abastados varandões. Uma grande água, como diriam os antigos chineses, abraça essa urbanidade faceira de laços feitos por vias que unem os bairros. Bem, unir de verdade não unem, em qualquer capital, bairro é como time para os moradores nativos ou imigrantes antigos. Em Porto Alegre não é diferente, difícil é escolher entre tantos bairros charmosos um, apenas um, para viver, especialmente se o vivente é do tipo estrangeiro em qualquer lugar, filho pródigo sem pedigree.

Floresta não, gritavam os jornais do dia. Crimes hediondos estavam surpreendendo o local conhecido como pacato, um antigo bairro residencial de fácil acesso ao centro. Deixei para lá, Floresta não! Mas esse nome tão simpático para um bairro ficou escondido em algum canto do meu cérebro. Estaria eu em processo de auto-sabotagem achando simpático um bairro que de repente virara capa policial dos jornais? Definitivamente risquei dos itens de procura o simpático nome Floresta, que pouco freqüentei na década de 1980 para além de uma ou outra peça alternativa no teatro que virou igreja pentecostal.
 
Centro? Poluído? Barulhento? Perigoso? Que nada. Perguntei a três amigos que moram no centro e lá estava um dos mais apaixonantes times do coração. Tem o pessoal que só ama lá, às margens do Guaíba, o velho Porto dos Casais, assim não abre mão do Gasômetro, do Parque Marinha do Brasil, segundo eles incomparável ao da Redenção ou ao Parcão. Muita vida no Centro. É calmo à noite, pacato à moda antiga com seus casarões, muitos reformados pelos próprios moradores, outros sendo levados na pazinha, já que a manutenção de casarões não é café pequeno para orçamentos domésticos.

Que jogue a primeira pedra quem nunca sonhou em morar ou abrir um negócio num casarão no coração de Porto Alegre. Como desprezar uma vista para o Guaíba? Em direção à Cidade Baixa vida noturna garantida e exceto na Lima e Silva, que ferve noite e dia, as transversais são cheias de calmo charme, apartamentos antigos, amplas salas, frondosos janelões, sobradinhos simpáticos. Ali dá para ter sossego de dia e agitação à noite. Aliás, Cidade Baixa e Bom Fim disputam com classe a turma da boemia, que não se faz de rogada e circula pelos dois com sinceridade. Não é bem o caso de vestir camiseta de dois times, mas admirar times campeões seja com a camiseta que for.

O Bom Fim, como o Partenon, concentra povo da UFRGS e da PUC, o ônibus fácil, direto, é logo ali. O bairro nasce no Parque da Redenção, o mais antigo da cidade, vem dali debaixo, da Cidade Baixa, bem roots, e morre lá no Moinhos, o bairro dos aristocratas da década de 1960 que em termos econômicos, pelo menos, jamais perdeu a majestade, nem quando a nata migrou para Petrópolis e Três Figueiras. Pela Ipiranga, tomando cuidado para não cair no Dilúvio, à esquerda o famoso Menino Deus, imortalizado pela música de Caetano. Bem lá em baixo perto da água, a zona Sul, que cerca o Guaíba, a rua Silvério, o Morro Santa Tereza, Ipanema e as chácaras com praias do lago, que aqui todos chamam de rio. A natureza lá para baixo sempre foi abundante e nos últimos 30 anos ela avançou pelas ruas da cidade. É raro, bem raro mesmo, encontrar em Porto Alegre alguma rua sem vegetação.



Curioso nessa paixão dos gaúchos pelo cultivo do verde, que o bairro Jardim Botânico, aos pés de Petrópolis, tenha sido durante tantos anos um bairro humilde e que só agora esteja despertando os olhos do interesse imobiliário. Visitei um apartamento com vista para o Jardim Botânico, aquela garantia de eterno verde, e apaixonei-me completamente, mas era pequeno demais para as necessidades dos livros e papelada do meu lar. O Jardim Botânico é uma espécie de Baixo Petrópolis, assim como Santa Cecília e nesse quesito, salvo algumas exceções, Porto Alegre não é diferente de muitas outras cidades; destina as áreas medianamente altas como redutos para a população economicamente privilegiada. Sim, há diferenças sociais e econômicas como em qualquer cidade brasileira; crimes, disputas, máfias do tráfico, gente agressiva, maus tratos a crianças e animais, altos índices de cesarianas e desmames abruptos, mas nesses dias de muita curtição no meu humilde apartamento com fogão a lenha, na divisa entre o bairro Floresta e o Auxiliadora, estou assim quase alienada dos problemas do mundo;  jogo a toalha por alguns dias. Que me desculpem as mazelas do mundo, mas preciso ficar na paz, afinal a mocinha do 302, que gosta de cuidar das flores do jardim do prédio, veio em pessoa na minha porta trazer um pedaço de bolo de boas vindas. Achei tão “qualidade de vida da capital”. Sinto-me no incrível direito de passear pelas ruas sob a imensidão das tipuanas, tomar uma cerveja no barzinho bacana como uma turista feliz, descabelada e de chinelos de dedo. Sinto a sombra das dores da guerra e da tragédia japonesa, me importo bastante com a ameaça de fechamento do curso de obstetrícia da USP, mas o skate me chama e eu voo com a pequena pela cidade que pouco se importa se uma mulher de cabelos brancos andando de skate é bizarra ou não.

Parabéns para Porto Alegre, que completa nesta semana 239 anos de vida.

4 comentários:

  1. Adorei o post, Claudia, me senti viajando pelos cantinhos encantadores sem nunca tê-los visto. Você e sua maravilhosa sensibilidade par apreciar e descrever as coisas, as pessoas e os lugares.

    Um beijo e boa estadia...

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  2. Isso é que é!
    Depois da tempestade sempre vem a bonança.
    Conheço muito pouco Porto Alegre, mas sempre tive uma ótima visão dessa capital.
    Agora com vocês morando aí, minha visão melhorou.
    Beijos grandes,
    Lau

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  3. Agora fiquei curiosa: por que se chama "Porto Alegre"? Conta essa pra mim, s'il vous plaît!
    E entra tantas fotos massa, pensei que ao fim a gente veria uma tua de skate! Fica pra proxima?
    E do fogão a lenha também, claro!
    beijos
    Renata e Samuel

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  4. Ei Renata, viva você.

    Olha, só sei que andei por tantos portos, pântanos, desertos, sertões, praias e montanhas, mas acabei voltando para esse velho conhecido Porto Alegre.

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