Cláudia Rodrigues
Nesse momento histórico mundial vencemos muitos desafios deixados por nossos antepassados, mas fomos com muita sede ao pote do tecnicismo, sem intensidade humanista equiparável e sem a reflexão necessária em áreas importantes das ciências humanas. Chegamos ao sec. XXI despreparados para lidar com os buracos existenciais que criamos. Fazendo uma analogia com a matemática estamos ainda na primeira operação. Só sabemos somar.
Nesta semana, apenas no Brasil, tivemos dois exemplos do caos social que vivemos nesse período da história. Um casal que fez inseminação artificial, ao saber que três embriões estavam se desenvolvendo, liberou para adoção um deles, ainda na barriga da mãe. Eles queriam muito um filho, aceitavam dois, mas não desejavam o terceiro, não era uma questão de renda, mas de planejamento familiar. Poder técnico sobre a vida. O outro caso, uma tragédia ocorrida numa escola municipal do bairro do Realengo, no Rio de Janeiro; um rapaz de 23 anos matou impiedosamente mais de uma dezena de crianças, ferindo outras tantas e depois se matou. Poder técnico sobre a morte. Tudo o que temos é o levante de vozes de ódio e desprezo pelos párias sociais e piedade das vítimas. Como se não matarmos e não sermos capazes de abandonar um bebê na barriga, nos livrasse de qualquer responsabilidade pela “peste emocional” que nos circunda. O casal, pária social do excesso de tecnicismo e sobra de dinheiro, sem o amadurecimento ético e emocional. O cidadão, assassino de última hora, sem ficha na polícia, até então um trabalhador desempregado desde agosto por não atender aos anseios de produtividade da empresa em que trabalhava, pária em soma no Brasil, raro apenas pelo tipo de crime cometido.
Em comum entre os crimes, além do poder técnico sobre a vida e a morte, a má cobertura da mídia, também por excesso de tecnicismo. Sobre o casal, nenhuma linha sobre os mais de cinco mil embriões congelados que o Brasil mantém a espera da legislação, nenhum debate sobre o caso inserido no contexto caótico de um país que tem sobra de crianças vivas e abandonadas pelas ruas e orfanatos, para além da excentricidade dos que produzem bebês ardentemente desejados, desde que sejam em número e no sexo escolhido e desde que muita gente das ciências médicas e biológicas fature com isso.
A mídia cobre mal esses casos de polícia, esses casos de humanidade mal-resolvida. Os maiores jornais de São Paulo e do Rio Grande do Sul conseguem entrevistar psiquiatras que confundem os termos básicos, atribuindo a nomenclatura psicose, que é vasta e não tão incomum como patologia, em vez de usarem o termo correto para assassinos em série: sociopatas. Não seria um preciosismo, mas uma consideração aos 30% da humanidade que não são neuróticos, mas psicóticos e que nascem, vivem e morrem sem jamais atacar alguém. Sociopatas não somam 1%. Isso é apenas um problema na cobertura, nem de longe é o mais grave.
O maior buraco da cobertura da mídia é apelar para o sadismo, com detalhes sórdidos sobre os fatos. Voilá precisa a mídia apelar para vender mais, ossos do ofício, mas daí a congelar apenas nisso e no pretensioso estudo do caráter do criminoso é muito primário. Muito antiético os psiquiatras e outros psis convidados, aceitarem dar diagnóstico baseados em fofocas de jornalistas, pedaços de cartas escritas sem datação, relatos da polícia e histórico apresentado pela família do infeliz.
O pior mesmo dessa banalização via apelo ao sadismo é que rapidamente os crimes são esquecidos, ficamos com as velhas máximas judaico-cristãs de que foi coisa de Deus, fatalidade, hora certa de cada um. No máximo culpa-se o governo, nunca, nunca mesmo a sociedade é levada a tratar seus problemas sociais, debater eticamente, buscar soluções. Nas escolas, nos clubes, nas ruas, a notícia acaba girando em torno da novelinha apresentada pelos jornais, telejornais, fotos nos sites; dramas particulares, uma espécie de big brother tristeza e só. Fica a mídia a esperar mais uma grande sensação com a desgraça alheia para alimentar-se da operação em voga no mundo: a soma. Deter a informação, jogar com ela, saber jogar a fim de atingir o sentimentalismo, exatamente como faz um noveleiro, é arte no jornalismo marqueteiro de hoje, focado na soma monetária. Com uma mídia mais comprometida com o conhecimento, com a informação e seus contextos sociais, muitas coisas poderiam, lentamente, mudar. Do jeito que vai, só ajuda a produzir mais poder. Fazer morrer e fazer viver, dois exemplos de poder máximo são o microretrato antagônico de uma sociedade emocionalmente analfabeta.
nú!
ResponderExcluirHahaha, trocando orelhas para entender esse Nú!, mas aqui está publicado, seja lá o que for. bjs.
ResponderExcluirAdmirando você sempre e mais!
ResponderExcluir"Pense global, aja local."
Admirado você sempre e mais!
ResponderExcluir"Pense global, aja local."
Excelente, muito bem-escrito e refletido. Não resgatar os contextos em que se inserem casos isolados são um passo pra mistificar, confundir, simplificar, tragicamente despolitizar. Não, os protagonistas destes casos não são simples "vítimas", mas tampouco se pode entender seus atos sem entender a complexa loucura coletiva em que andamos imersos nestes tempos insanos.
ResponderExcluirÉ, Gabriela, isso mesmo, não é uma questão de ver agressores como vítimas da sociedade, mas enxergar a sociedade como canal, produtora de agressores.
ResponderExcluirClaudia, obrigada por este excelente post. Cada vez gosto mais do seu blog. (E cada vez gosto mais de estar vivendo sem tv com canais abertos)...
ResponderExcluirAh! Traduzindo: "nú" é a contração linguistica de "nossa senhora" que virou "nossa", em mineirinho é "nussa" e aí quando o espanto é muito grande vira apenas um enfático "NU!!"