Cláudia Rodrigues
Os primeiros conhecimentos a respeito de doença e cura baseavam-se em curandeirismo e misticismo. A partir desses métodos intuitivos surgiram experiências e relatos cada vez mais precisos e finalmente, no último século, estudar a doença tornou-se uma obsessão, bastante bem exemplificada pelas teorias e práticas acadêmicas que investem potência máxima na arte de pesquisar uma questão mínima em seu conteúdo máximo de extensão e compreensão.
Seria perfeito demais para dar certo e as conseqüências desse pensamento cartesiano, separado em blocos, é que a ciência não se satisfez com a possibilidade de encontrar a cura das doenças num processo contínuo. Está numa luta frenética pela cura da morte e o mais patético: da velhice. Como um Édipo errante, esse caminho para desvendar a morte, encontrar a imortalidade, cada vez se afasta mais da pulsão vital e vai de encontro a novas e mais complicadas patologias, inclusive psíquicas.
Influenciadas pela mídia -- altamente envolvida com o setor de marketing da medicina --, as pessoas antes mesmo de completarem 50 anos já estão querendo evoluir para trás, manter eterno o funcionamento de hormônios de um corpo adulto jovem. E o que acontece com o cérebro de uma pessoa de cinquenta anos que bloqueia o funcionamento natural de seus hormônios? Deixa de acessar a capacidade associativa altamente desenvolvida nessa fase, mas a velocidade dos raciocínios, típica da fase dos 30, 40, também foi perdida. O que ela ganha? Aparência mais jovem e talvez um outro risco maior de câncer. Mas câncer tem cura e aparência, ah a aparência é coisa séria.
As parturientes que o digam. Não podem chegar apavoradas no hospital, com medo de dar conta do recado, precisando de ajuda humana, consolo, massagem, conselho. Devem manter as aparências e surgir calmas, de preferência antes da hora, antes das dores; devem perguntar o que fazer, deitar na maca e esperar anestesia e corte, além de uma explicação qualquer sobre uma indução mal-sucedida, um bebê mal encaixado, uma ausência de dilatação e outras pressas para manter as aparências.
A capacidade nata que as mulheres têm de gerar e parir vai contra nossa cultura de aparências. A cura e o restabelecimento da saúde têm sido ignorados pela medicina, tanto que vivemos no mundo das prevenções. Prevenções perigosas que vão desde as antigas doenças benígnas das crianças, curáveis com tratamentos caseiros e responsáveis por uma maior imunidade; até as mais modernas doenças da civilização, como cânceres, alergias, rinites e recentemente, nos últimos 30 anos, essa prevenção ao nascimento, essa espécie de asco social que estamos desenvolvendo a respeito do ato espontâneo do nascimento.
O raciocínio é todo muito lógico, o médico existe para extirpar a expressão da dor, os medicamentos para mascarar os sintomas; os encaixes são perfeitos e as conseqüências continuam surpreendentes. A talidomida foi só um exemplo famoso de doença causada por um medicamento que alterou genes, mas existem os antibióticos e as crises persistentes e crônicas de infecções, as cirurgias e os desdobramentos que exigem mais cirurgias e mais medicamentos.
Não se pode radicalizar e acreditar que chazinho resolve tudo, que reza cura infecção, como faziam nossos antepassados. Mas talvez estejamos em cima da hora de perceber o quão medievais estão nossas relações com a saúde. Nos apropriar da medicina em vez de deixar que a medicina se aproprie de nossos corpos indevidamente, como temos deixado acontecer seria um ato pós-moderno. A medicina deve ser ferramenta de cura, não ato de tortura.
O médico tem que ser levado de volta para seu lugar, de pessoa capacitada acompanhante de nossos processos. É necessário retirar dele a coroa de rei, o mito de um Deus que todo mal é capaz de extirpar, porque nenhuma relação entre homem-mulher, mulher-mulher, homem-homem, pais-filhos pode dar certo com graus elevados de subserviência e subjugação. Respeitar o conhecimento de alguém nada tem a ver com perder o interesse por nosso núcleo pulsante, pensante. Nos desumanizamos quando idolatramos do mesmo modo que nos desumanizamos quando subjugamos; são posições sub-contrárias que servem ao mesmo propósito.
Humanizar uma rede de atendimento ao parto é nivelar o olhar do profissional ao da parturiente. E cabe a ela uma parte importante desse processo. Questionar, pensar sobre a resposta dada, ler sobre o assunto, encorpar-se diante dos desafios que seu corpo impõe.
Não podemos falar de humanização se não falarmos de igualdade. Não podemos falar de igualdade se não exercitamos a fraternidade e não podemos ser fraternos se não somos livres para expressar nossos sentimentos e conhecimentos. Todos nós, profissionais ou pacientes.
Cláudia, cheguei no seu blog pela divulgação do seu texto sobre o mamaço e a coluna na Folha, mas estou simplesmente apaixonada, li os textos mais recentes, mas quero ler tudo. Estou adorando!
ResponderExcluirMuito a refletir, muito a refletir...
Gracias Dani. você é muito bem-vinda.
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