sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

2012, a primeira vez



Cláudia Rodrigues

Até que não foi tão má assim essa ideia de partir o tempo em pedaços. Além da lógica natural vinda das estações, das fases da natureza atuando de uma maneira ou de outra nas várias regiões do planeta, a repartição do tempo em fatias nos traz a agradável ilusão de que o tempo não se reduz apenas a um continuum somático existencial com começo, meio e fim.

O que podemos afirmar é que a sensação de renovação de cada uma das primeiras vezes de nossas vidas nos faz pulsar em inefável prazer desde que nascemos. O bebê vive a sua primeira vez ouvindo a voz da mãe e relaxa, aconchega-se no mundo bizarro até então, do ar, completamente diferente do universo aquático em que vivia.
Logo depois ele vive a primeira vez de mamar e isso traz novamente a completude de uma sensação de primeira vez.

A primeira vez de uma coisa que provamos e aprovamos nos leva à segunda vez e a repetições constantes, sempre em busca daquele prazer colossal que nos fez sentir gratidão máxima pela vida. Curiosamente depois de muitas vezes de experimentação, de repetição de uma primeira vez, nos perdemos na rotina. No caso dos bebês, esses seres dotados de extrema inteligência sensorial, assim que vira rotina, coisa fácil, eles partem para outra. Sábios que são, não largam o que adquiriram, preferem acumular ganhos emocionais, por isso caem de boca em comidas e mantêm o peito, descobrem as mãos, os braços, depois as capacidades das pernas.

Os bebês vivem a primeira vez todos os dias, mas são ligados em repetir mais nas relações, nos apegos, aconchegos e menos em coisas. Bebês pouco se lixam para uma infinidade de objetos. Abrem exceção apenas para os poucos objetos impostos como substitutos de afetos, o que não parte deles, mas dos adultos com quem convivem.

E aí vamos crescendo, o primeiro amigo, a primeira palavra, a primeira frase, a primeira conta, a primeira nota musical, o primeiro amor, o primeiro beijo, a primeira relação sexual, todas as primeiras vezes que nos são caramente prazerosas tendemos a repetir orgasticamente. A vida é um orgasmo existencial diário ou pelo menos deveria ser.

O que nos mata, nos adoece, é a repetição técnica, quando já não sentimos nem um milionésimo de prazer vivido na primeira vez. Mas a vida é também um continuum somático e vamos nos dando conta disso indelevelmente com o passar do tempo, marcado pelo calendário ou não. É uma coisa biológica, atávica, não temos como fugir da realidade do amadurecimento e de nossa finitude.

Amargamos derrotas ao longo da vida também: o primeiro não, o primeiro desafeto, o primeiro grande erro, o primeiro fora. Vamos ficando anos-luz longe daquele bebê ávido por primeiras vezes que fomos um dia, passamos a cultivar apegos territoriais, materiais, apegos mundanos de prazeres menores, egóicos. Pior do que isso e mais fatal, vamos perdendo a visão, a audição, a flexibilidade e se o que sobra é apenas a autoinveja do que fomos um dia, estamos mortos em vida.

Talvez o que tenhamos que sacar a uma certa altura da vida é um meio termo entre a ingenuidade dos bebês, ainda inaptos para as derrotas -- inconscientes do continuum somático existencial que também os rege -- e nossa capacidade cortical maior para utilizar a sensibilidade pelo prazer adquirida lá atrás.

Chegar perto do fim é meio assustador. Foram tantas primeiras vezes e de repente começam a surgir as últimas vezes. É assim, por volta dos 50 anos já sabemos que metade, pelo menos e na melhor das hipóteses, já foi. É fácil para quem tem 30 olhar para a gente e dizer: "que isso, você é tão jovem ainda, tem a vida pela frente." Para quem tem 50 parece humor negro. A realidade se impõe, começamos a viver as últimas vezes, a mais dolorida é a dos amigos que se vão. Pois é, os amigos começam a morrer e temos uma pequena coleção de últimas vezes em que vimos aqueles amigos queridos."Era uma criança ainda ontem, ainda ontem estávamos ali nos 30 tomando umas."

É, mas envelheceu e já foi, falhou, deu defeito, foi eliminado. É diferente essa dor, não menos sentida do que a perda do amigo que morreu jovem em um acidente; é uma dor de identificação, nos olhamos uns aos outros e pensamos que foi sorte ter durado tanto, cria-se um clima até de saudável competição. Olha, fulano se foi aos 50, já estou com 70, então estou aí lucrando 20 anos. Ninguém fica realmente chocado com a morte de uma pessoa de 90 anos. Fica aquele clima de vai em paz.

A parte ruim da segunda metade é cair na história de não ter mais primeira vez só porque passamos a colecionar as últimas vezes. É preciso encarar as últimas vezes também como primeiras, tentar tirar alguma experiência, alguma graça dessa cachaça que é a vida e seguir buscando primeiras vezes antes da primeira vez de morrer. Cabe resolver esse teorema de que a morte, ponto fatal da existência terrena, não pode ser um foco em si porque, se for, começamos a tremelicar de medo e paramos de arriscar alguma primeira vez aqui e outra acolá.

Vai que a gente dura muito, melhor continuar vivendo as primeiras vezes, nem que seja a sensação da primeira vez que comecei a ler com meu par de óculos de 3 graus na semana passada. As letras durinhas, tenras, em tipo 12! Igualitas as que eu via sem qualquer grau aos 30 anos. E pow, ainda tem grau para mais de 10 e lá para frente, quando a catarata chegar, um esquema novinho em folha. Não, não dá para desistir, as primeiras vezes podem continuar tomando conta de nossos dias, de nossos meses, de nossos anos.



Um 2012 especial para todos, especialmente para aqueles de nós que não se acovardam em continuar buscando primeiras vezes, infinitamente e para sempre, esse lugar esotérico que nunca morre.

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