quarta-feira, 10 de setembro de 2014

Entre as fantasias infantis e as crenças dos adultos

Cláudia Rodrigues 

Ainda hoje em alguns nichos culturais as fantasias das crianças são consideradas mentiras. Isso é muito triste, as fantasias infantis têm muitas funções para o desenvolvimento durante a infância. É por meio das fantasias que a criança pensa o mundo, desenvolve raciocínios, faz reflexões e principalmente se auto-regula, processa sofrimentos inerentes à vida, desde pequenas frustrações cotidianas até coisas mais complexas como morte de animais domésticos ou de pessoas da família.

A imaginação das crianças foi tema de estudo de grandes pensadores do comportamento infantil e suas funções são tantas e tão fascinantes que a interpretação desses estudos dentro do caldo cultural e comercial, acaba muitas vezes produzindo uma inversão de valores e as crianças em vez de simplesmente expressarem suas fantasias livremente, são manipuladas por fantasias vindas dos adultos para fins confortáveis e úteis para os adultos, universo dos adultos. É o caso do Papai Noel, Coelho da Páscoa, Fada do Dente, todas essas fantasias criadas pelos adultos com fins muito específicos de mexer e manipular a facilidade com que as crianças entram no universo fantástico de crenças.

Ok, bom separar, isso tudo pode existir, cada família escolhe o que deseja promover, mas nenhum desses exemplos é expressão de fantasia infantil. São crenças que manipulam a tendência natural da criança de fantasiar. É preciso compreender bem isso, não necessariamente para boicotar as crenças fantasiosas ou extirpar as lendas e contos de fada da vida das crianças, mas para não ir ao extremo de engambelar as crianças. Ou pior: usufruir com muita solenidade, apropriar-nos de um espaço privado da criança, tecer com nossas mãos o seu tecido de sonhos, invadindo-o com nossas crenças e a nosso favor.


Adultos, ao longo da história, sempre acharam jeitos de divertirem-se às custas das crianças, iludindo-as, explorando a imaginação fértil dos pequenos, tanto com ameaças de homem do saco, bicho papão, quanto com fadas e duendes. É importante questionar o que se faz em nome da imaginação infantil e até que ponto a manipulação dessa característica, dominada pelos adultos, usa a criança para assustá-la, submetê-la ou ser boazinha, para prolongar sua inocência, para impedir que ela questione o mundo naturalmente, a partir de suas próprias fantasias e pensamentos. Fantasias manipuladas para serem só lindinhas é pura sacanagem e doutrinação. Crianças imaginam coisas lindinhas, engraçadas, impossíveis e ruins, feias, tenebrosas. Assim que o homem do saco criado pelos adultos é diretamente proporcional ao duende que dá biscoitos do saco do homem do supermercado.

Fantasia infantil é quando um menino de 4 anos acorda, olha para as árvores que balançam ao vento e diz: olha papai, hoje as árvores estão fazendo muito vento. O pai sorri, entende que isso é uma fantasia, no universo fantástico do pensamento infantil, são as árvores, seres vivos, que balançam e provocam o vento e não o contrário. O pia pode apenas ouvir, receber a fantasia, pode utilizar a doce ideia para pensar em fabricar uma pipa e observar como o pensamento do menino evolui, afinal um dia ele vai estudar física. Pode também pirar na batatinha e sair com o guri pela mão divertindo às custas da inocência do moleque, rindo solitário, bem adulto e fazendo provocação, contando a todos que a criança vê as árvores produzindo vento, mexendo-se doidas como se fossem seres humanos.

Fantasia infantil é quando a menina de 2 anos, brava com algo que a mãe a impediu de fazer, solta a pérola: “então, mamãe, uma vez eu era tão grande e tão forte que pegava assim pelo seu dedo e girava, girava, girava você até você ir parar lá do outro lado do fundo do mar.” A mãe pode perguntar e ir além, viajar com a menina, perceber o que foi que causou esse processo, pode só sorrir e escutar, raiva faz parte, direito da criança processar sua raiva por meio da fantasia e pode pisar na jaca e se sentir incompreendida falando "tadinha da mamãe, como você é má"

Fantasia infantil é  quando as crianças conversam com objetos, brinquedos, flores, animais e de fato juram que escutam respostas, fantasia infantil é imaginar que um dia, dentro de uma avião, esticando bem o braço para fora, será possível guardar um pedaço de nuvem e levar para seu amigo na escola quando voltar de viagem.

É a partir das fantasias que a criança constrói o seu mundo, a sua versão de mundo dentro de dados de realidade ainda muito abstratos para ela. A criança que é livre para fantasiar, que tem escuta dentro de casa, que pode perguntar e receber respostas sinceras dos cuidadores, de acordo com a idade, vai elaborando suas fantasias de maneira a poder trocar com a realidade e apaixonar-se pela realidade. Mais vale plantar um pé de bananeira e ver crescer, colocar água todo dia, entender lentamente o processo de crescimento, florescimento e frutificação da planta, que demora e acompanha as fantasias-- e que muitas vezes frustra as primeiras fantasias, como a de ver a banana pronta no dia seguinte e meses depois ver a banana sem poder ser consumida por longos dias após a colheita --, do que sair pelo quintal procurando duendes, que jamais encontrará.

A criança é um ser social, um ser político, não deve ser tratada como ignorante, ela pode sim se importar com outras crianças, de outras realidades, ela tem a ganhar em conviver com crianças em tribos de índios, de outras escolas, de outras paragens. Ela pode desde tenra idade pensar e tem o direito de obter respostas que sejam dignificantes para ela, com significados reais. Ela tem o direito de evoluir em suas fantasias, não deveria ser direito dos adultos “prender” as crianças em fantasias que já não condizem com o desenvolvimento infantil da fase em que estão.




 Por serem frágeis e dependentes, as crianças gostam de agradar os adultos, se elas percebem que seus pais desejam que elas acreditem em Papai Noel, elas serão capazes de fingir que acreditam em Papai Noel. Isso não fundamenta uma relação de confiança, isso é uma trapaça na relação e a trapaça é dos adultos e não da criança.


Criar crianças em redomas fantásticas para poupá-las do que é “feio” no mundo, envolvendo-as em fantasias de adultos pode ser uma perversão e não um cuidado, pode ser manipulação e não proteção. E isso sim é feio, é malvado, é infantilismo do adulto não querer ver as crianças se desenvolverem livremente.

Assim que, caso o seu filho venha perguntar se o Papai Noel existe, se a Fada do Dente existe, de o Duende vai trazer guloseimas, é sinal de que ele está duvidando disso e ele tem o direito de duvidar, a dúvida é o início do conhecimento e o conhecimento jamais deve ser barrado do universo infantil.

Há uma palavra perfeita para esclarecer as dúvidas das crianças sobre o universo fantástico que os adultos criaram para elas e essa palavra chama-se lenda. É uma bela palavra, não é uma destruidora de fantasias, é uma esclarecedora de fantasias, abre novos horizontes para além do fast food das fábulas.

Não há nada de errado com a lendas, com as histórias, com os contos de fada, eles mexem com o universo imaginativo, levam as crianças a viajar na imaginação, elas mesmas podem criar novas histórias, inventar algum tipo de, quem sabe, Truendes, e assim exercerão a verdadeira liberdade de ser e estar no mundo como sujeitos da própria história, menos pasteurizadas, mais livres das manipulações que tanto divertem os adultos.

Crianças podem ter amigos imaginários, isso é bem comum, faz parte do universo infantil, deve ser aceito com curiosidade, algum interesse, mas não é justo que o adulto ao seu lado veja esse amigo, fale com esse amigo. Se isso acontecer tem outro nome: psicose familiar.


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