domingo, 5 de outubro de 2014

O trabalho de parto

Cláudia Rodrigues

O trabalho de parto, conhecido por aquele tempo bastante variável em que a mulher entra no processo de dar à luz, jamais é um tempo perdido. Mesmo quando demorado, extenuante e resultante em cesariana é um tempo benigno em hormônios e sentimentos preparatórios para a maternidade e a paternidade.
Expectativas, medos, conjunções, sintonias genéticas, afetivas, desafios que se colocam na subida da montanha rumo ao local mais alto do amor: a recepção das vidas dos bonsaizinhos humanos que chegam para respirar o ar aqui da Terra pela primeira vez.


É comum pensar que o trabalho de parto rápido é o ideal, o melhor, muitos de nós achamos que o momento da expulsão é o mais doloroso e a verdadeira provação. Não é. O trabalho de parto é o único trabalho a ser vivido quando se espera um nascimento. A expulsão ou o nascimento via cirurgia é apenas o desfecho final, assim como é o aprendizado da leitura pelas crianças, que pouco diz sobre o processo de aprender a ler, muito mais complexo e trabalhoso.

Muitas mulheres pensam que não vale a pena tentar um parto natural porque pode resultar em cesariana e que assim se pode ter o pior de dois processos. Ledo engano, o mais importante é mesmo o caminho, assim como nas viagens o mais instigante não é sentar na poltrona do avião ou ficar hospedado nos melhores hotéis, mas as paisagens, as pessoas que conhecemos, o processo de cada viagem. O suor, o cansaço, os problemas, as soluções, o banho quente, às vezes frio, depois de um dia exaustivo, as caminhadas, as emoções dos encontros reais com artes que antes só foram vistas em filmes e livros, enfim é de realidades com cheiro e texturas reais que se vive uma viagem. Na viagem o que mais importa são os cheiros, os sabores, os significados internos, os sentidos aguçados.

O trabalho de parto é o começo de uma longa viagem para dentro de nós. Mesmo quando somos apenas acompanhantes, ele nos imprime com sentimentos intensos, gemidos, emoções, vocalizações, cantos, águas, mil e uma posições, ritmo, música, cansaço, alegria e intimidade, muita intimidade, a maior das intimidades entre os atores protagonistas e os assistentes desse momento da sexualidade humana. Olhares, medos, dúvidas, o trabalho de parto é o resumo de tudo o que vamos viver inexoravelmente na aventura de maternar, paternar, educar e viver com nossas crianças. Quem acompanha um trabalho de parto, seja de um filho ou de um amigo, seja como profissional ou protagonista da história da criança que está para nascer, tem a oportunidade de ampliar a própria capacidade de amar. É um espetáculo da natureza assistir uma mulher em trabalho de parto, é de uma beleza e de uma força arrebatadoras.
Nos sentimos pequenos, humildes, humilhados em nossas arrogâncias diante dessa luta pela separação de um ser tão querido, tão fielmente mantido bem e vivo até então daquela forma. E é preciso seguir o fluxo, já não é mais possível que se mantenham assim tão uno, eles precisam se separar, correr esse risco, lutar, lutar para viver de um outro jeito, de um novo jeito.


O bebê encaixa, a mulher desencaixa do corpo de grávida, ela precisa passar da fase de uma pessoa simbiótica com outra para duas pessoas, ela vai precisar dividir a pessoa que sai dela com o mundo e isso não é nada fácil, não somente do ponto de vista físico, mas principalmente do ponto de vista emocional. Nada se sabe sobre a vivência do bebê a respeito disso, mas é certo que a dupla simbiótica vai ter que dar conta de ser mais dupla e menos simbiótica.


Todo o amor, segurança e aconchego vividos por cerca de 40 semanas na barriga se transformam em luta de separação. E quanto essa luta é significativa para o que está ainda por acontecer, a vida da maternidade, da paternidade, da doação de amor e cuidados por anos a fio! E é apenas o início da viagem de uma vida inteira que vai nos importar mais do que tudo até o dia do nosso suspiro final.


Lutam as mães, trabalha a assistência de forma cuidadosa e singela, prefere não errar, se entrega para acertar, se reveza, comemoram doulas e parteiras a cada avanço, cada passo, rezam os parceiros, pedem aos céus por saúde, temem pelo mal, rogam pelo bem, pelo melhor, são desafiados a esperar, exercitar a paciência, a tolerância, entendem ali, no trabalho de parto, que nada é fácil na arte de amar, que bebês não caem do céu, saem dos corpos exaustos das mães, dos corações extenuados dos acompanhantes que se enchem de alegrias multiplicadas quando se correu o risco de lutar, tão semelhante a outros riscos da vida pela vida. É a luta pela sobrevivência, pela paz do nascer, pelo nascimento da paz.


Não, não estamos falando de colocar a vida do bebê em risco, mas o risco de colocar os corações dos adultos responsáveis nas suas próprias mãos, entregues, finalmente, após o nascimento, seja de que forma final for, muito mais expandidos, completos em plenitude, unidos para sempre em amor genuíno pelo ser que fez nascer os seus melhores e maiores amores. O trabalho de parto é desimportante diante de uma vida inteira que está apenas começando, mas é a única possibilidade de ensaio para os adultos responsáveis, o único mata-borrão que podemos lançar mão antes de cairmos na real do aprendizado prático de amor parental.

O bebê é inocente, o bebê não nasce sabendo amar, o máximo que ele pode fazer, e de fato faz, é se fazer amar, até o dia em que ele mesmo será capaz de lutar para amar um ser tão bonsai assim, tão delicado assim.


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