sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

Existe amizade entre homem e mulher?

Cláudia Rodrigues



Desde muito cedo ouvimos a famosa frase "não existe amizade entre homem e mulher". Crianças pequenas, muito pequenas mesmo, com apenas 3 anos de idade, quando escolhem um amigo de outro gênero, logo ouvem que são namoradinhos. Também é comum que mães e pais convidem para ir em casa apenas amigos dos mesmo gênero. Festa do pijama de meninas, festa do pijama de meninos e outras celebrações são divididas em gênero e esses comportamentos ajudam a sexualizar precocemente as relações humanas, impedindo a expressão espontânea dos afetos. A mal sexualizar as relações humanas porque não deixamos de nos apaixonar quando é o caso, mas inibimos as muitas possibilidades de afeto para além da sexualidade.

Quando jovem dividi apartamento com um casal de amigas, nessa época ouvi piadinhas e insinuações de que eu era lésbica. Anos depois minha filha teve como grande amiga e frequentadora de nossa casa uma jovem da mesma idade dela que costumava ter namoradas e então fui "avisada" que minha filha estava indo pelo "mau caminho", era necessário que eu cuidasse das amizades porque aos 16 anos era a fase em que "isso" deveria ser prevenido. Curiosamente ela teve a mesma atitude da mãe anos antes, deixava no ar, com ar maroto, e fim de papo.

A coisa toda em torno dos desejos humanos é tão mascarada e hipócrita que se coloca no lixo não só as mil possibilidades de afeto, mas a própria sexualidade, nossas pulsões vitais que não cabem nesses preconceitos todos. O problema de quem controla muito e reprime muito a liberdade do parceiro é a falta de gozo e só a falta de prazer nos afasta de um bom relacionamento. Assim é bem provável que uma sociedade inteira esteja bem doente porque não opta pela monogamia por amor, por escolha, mas porque tem que ser, porque é um risco amar demais.

Somos seres sociais mesmo quando somos de temperamento mais reservado. Gostamos de outras gentes por seus olhos, seus cheiros, suas ideias, por infinitos conteúdos que cada um traz, mas acabamos presos em guetos. A turma de casais, que não raro exclui um dos cônjuges em caso de separação, as inibições entre pares de amigos que se sentem atraídos, às vezes por mil outras coisas, mas acabam achando que é na sexualidade por pura falta de liberdade para tomar um chope.

Há mulheres que mal se autorizam a sair com amigas quando são casadas ou têm namorados. Com um amigo homem nem pensar! Elas mesmas não consideram aceitável seus parceiros saírem com uma amiga, isso só é liberado entre pares do mesmo gênero.



Claro que em uma sociedade com esse grau restrito de liberdade sobram fantasias de experiências da sexualidade e falta amor, confiança e entrega. Acaba faltando diversidade e aí as pessoas ficam estranhas, mulheres "comprometidas" quando perto de homens desconhecidos ficam piscando os olhos, homens "comprometidos" diante de mulheres desconhecidas ficam se pavoneando, é mesmo uma coisa deprimente o que esse conceito de que não existe amizade entre homem e mulher faz com os seres humanos.

Pessoas que nos afetaram na vida, como amores que se foram, mas deixaram boas lembranças, viram pessoas proibidas nos novos relacionamentos e isso é muito triste e totalmente desnecessário, conta de um ciúme doentio do passado do outro, de algo que o outro já ultrapassou em um nível sexual, mas que talvez nunca ultrapasse no rico mapa dos afetos.



Lembro uma vez, eu era muito jovem, estava com meu primeiro bebê de colo, em pleno retorno da vida sexual, quando meu marido anunciou que iria viajar para São Paulo e pretendia visitar uma ex-namorada, a jornalista Inês Knaut. Lembro bem, meu coração acelerou, senti ciúme, senti medo, bateu a insegurança, mas ficou nisso, afinal eu a havia visto alguns anos antes numa feira em São Paulo e ela fora muito gentil comigo,  percebi só carinho e amizade entre eles. Mas o marido, muito transparente, acabou me contando que eles haviam tido um romance, uma paixão forte, chegaram a fantasiar com uma vida no interior de Minas, o que não aconteceu. Depois dela teve outras namoradas e eu cheguei uns bons 3 anos depois, mas entre suas ex, essa era um afeto especial, eles se gostavam por muitos outros conteúdos, isso era evidente.

Enfim, ele foi para São Paulo a trabalho e foi jantar com ela, levar notícias da nossa vida, nosso bebê, saber dela, de suas filhas, seus romances.
Voltou para casa e contou com olhar meigo o encontro, o jantar na casa dela, de como uma das filhas que estava lá era bonita, quase tanto quando a mãe e de como riram juntos da fantasia que tiveram de morar no interior de Minas, ela fazendo geléia e ele plantando milhos. E eu serenei, o que ele tinha com ela jamais seria destruído na memória deles dois, o que havia comigo também não, tínhamos nossos planos e sonhos sendo realizados, tínhamos nossa cama e nossa vida na praia.



Alguns anos depois ela morreu, ele ficou triste, bem triste, chegou em casa com uma avenca naquela noite, pendurou na varanda, eu fiz um chá, ouvi suas memórias e eu mesma batizei a avenca com o nome dela e fiquei feliz por não ter impedido o encontro que tiveram, o último encontro, ainda antes dela adoecer.

E sim, essa não é uma história machista, eu recebi na nossa casa ex-namorado sozinho, em crise de separação, ex com suas novas namoradas e temos ambos amigos que não são comuns, mas de outras vidas que tivemos antes de nos conhecer, são afetos para sempre, afetos que se sobrepõem às eventuais experiências sexuais e obviamente não são todos os ex, dos muitos que nós dois tivemos, que fazem parte dessa trupe. Há amigos e amigas dessas outras vidas que sempre foram apenas amigos sem envolvimento sexual. E está tudo certo, as pessoas todas têm muitos conteúdos para além dos gêneros e de fases em nossas vidas. Ao longo da vida conhecemos pessoas,  colegas de trabalho que nos afetam, que nos comovem, se reprimimos isso, se não podemos amar, se não nos permitimos olhar, conversar, sentir coisas boas, as fantasias transformam tudo em sacanagem, literalmente. Está tudo ao contrário, não é a prisão dos afetos que circulam em nós que mantêm um relacionamento, mas nossa capacidade de deixar que os bons afetos polinizem nossos relacionamentos mais caros e profundos.

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