sábado, 24 de novembro de 2012

Somos todos preconceituosos



 Cláudia Rodrigues

Um amigo, a quem quero muito bem, postou em rede social dia desses uma brincadeira aparentemente inocente em cima de fotos de casais públicos: homens bem mais velhos estão acompanhados de suas esposas jovens e belas. A brincadeira leva gregos e troianos ao riso imediato. Aqueles homens são uns bobos e as mulheres umas interesseiras em dinheiro, status e poder. Todos entendem, todos riem e começam as piadas. Meu amigo certamente não pensou em mim e no meu marido, na nossa diferença de idade, no namoro que ele viu começar em 1989 e que dura até hoje com muitos frutos, nenhum deles de alta rentabilidade. O chapéu não nos serve, não me serve, mas de alguma maneira eu olhava a foto e aquilo me incomodava. Olhava de novo cada casal e pensava que sim, poderia ser, alguma daquelas mulheres poderia ter se casado por dinheiro, por status. Ou não. Como afirmar com certeza? Por que havia tanta graça naquilo? Por que para mim não havia graça alguma, só incômodo?

Uma delas, a jovem esposa do vice-presidente do Brasil eu havia visto em fotos apenas uma vez, na posse do marido e na foto. Reclusa, a bela senhora, soube um tempo depois, cuida de uma criança pequena, seu filho da união com o político e deve fazer malabarismos para não aparecer publicamente porque raramente os fotógrafos conseguem uma imagem dela ou da criança. Frissón total quando conseguem e logo começam as piadas e insinuações. Não é de admirar que ela se esconda. As outras não sei quem são, mas não acho graça nem lógica determinista nesse senso comum: homem mais velho com mulher mais nova= casamento por interesse. Preconceito é assim, só não temos 100% de preconceito com algo que nos toca na carne, os outros todos temos que ir tratando vida a fora, depurando, tentando vestir a pele do outro para sentir. É uma pele de empatia, ela atenua a dor do foco e cura a nossa doença social em parte, mas zero de preconceito, aí só sendo foco mesmo e olhe lá porque é preciso mexer a massa cinzenta para zerar até um preconceito que vem contra nós.
Como casei com um homem 17 anos mais velho, esse preconceito especificamente senti com profundidade para afirmar que não tenho, por isso a piada não encaixa para mim de jeito nenhum, pelo contrário, me incomoda. Quando vejo um casal com diferença de idade na rua não tenho essa primeira impressão, nunca, sempre vejo um suposto caso de amor, simples assim. "Ah, mas a mulher é uma sirigaita, uma piriguete social reconhecida e o cara um broxa famoso cheio da grana." Não importa para mim, eu penso que sim, que mesmo uma piriguete social reconhecida e um broxa famoso cheio da grana podem se apaixonar um pelo outro e fim e não é por ingenuidade.                                                                              
Minha ausência de preconceito na área se dê talvez porque eu tenha sofrido bastante entre meus 25 e 35 anos de idade em hotéis, restaurantes, nas ruas, nas praças. O olhar social normopata  para o homem mais velho e a mulher mais nova é sempre esse em 9 entre 10 pessoas nas vias públicas. Meu marido e eu conseguíamos cerebralizar e até rir porque ele vinha de uma família pobre, não tinha onde cair morto e eu vinha de uma família com mais dinheiro e com mausoléu, inclusive. Quando resolvemos morar juntos, entrei com um carro, ele com nenhum bem material. Ele tinha uma filha para sustentar, eu só precisava sustentar a mim mesma. Hoje ele tem direito a uma parte numa herança da minha família e sim, eu posso morrer antes. Mas e se não fosse assim? E se ele fosse rico e eu pobre? E se fosse ele a ter promessa de herança e eu não?
Para ele estava resolvido, casou por amor com uma moça bonita e com herança, para mim não; os olhares, as piadinhas estavam na rua, era no espaço público, acompanhada de meus dois filhos pequenos que vivia a minha dor, uma dor invisível, solitária. Nunca entre nossos amigos, mas sim, provável que com casais desconhecidos na mesma situação que a nossa, meus amigos fizessem piadas, afinal é o senso comum que nos faz rir daquilo que fomos ensinados a rir e que não nos toca por falta absoluta de empatia e reflexão.
Um dia a filha do meu marido, criança inocente, estava a passar férias conosco, ela gostava, estava feliz ao meu lado brincando com seu meio-irmão e de repente sombreou a expressão, provavelmente amedrontada com a possibilidade de perder aqueles bons momentos, iniciou uma conversa estranha:
Você é bem mais nova do que meu pai, né?
Sim, sou.
Você gosta dele?
Gosto, você não vê que eu gosto?
É, parece, mas é verdade que você um dia vai dar um chute na bunda do papai e ir embora?
Não, não farei isso, de onde você tirou essa ideia?
Ah sei lá, só pensei, coisa da minha cabeça mesmo.

O preconceito é assim, ronda a pessoa que é vítima dele, não poupa a formação infantil, está no cotidiano em falas “normais”,corriqueiras, aparece tanto de maneira inocente, na boca de uma criança que nem compreende o que está dizendo, quanto jocosa, perversa e violenta nos adultos. O preconceito produz dores que não podemos medir quando não somos vítimas dele. Quando jovem muitas vezes me deixei levar pela autocensura, reprimi atitudes espontâneas, queria aparentar mais idade e mais feiura. Mas que bobagem, afirmamos com veemência, que é falta de autoestima ligar para o que os outros pensam e dizem! Pois é, o preconceito, por mais invisível que seja, como é o caso dos casais com diferença de idade, pode detonar com a autoestima. Existem preconceitos muito piores e mais “famosos”, mas toda forma de preconceito é destrutiva. Toda forma de preconceito deveria ser tratada, refletida pelas famílias, pela escola e pela sociedade em vez de passar em brancas nuvens de geração para geração. Podemos fazer melhor.


Ser negro é fácil? Deve ser, para os brancos deve ser fácil ser negro. Ser homossexual, bissexual, transexual deve ser fácil, para os heterossexuais é moleza. Ser descendente de japoneses parece tão lindo e exótico para quem não é, para quem nunca foi pejorativamente chamado de japa. 
Ah, mas o que temos com isso? Cada um com seus fatos, com sua dor e segue o baile do discurso do respeito à diversidade . Não é tão fácil, infelizmente, não serve só o discurso de “eu não tenho preconceito”. Temos que começar pelo início porque nossa vida inteira está inundada de ideias e valores preconceituosos e não é suquinho a libertação desses valores.
Ah olha lá a passeata das mulheres que sofrem violência, pois é, coitadas, né?
E onde está essa violência, de onde parte? Só de seus maridos em suas casas?
Não, muitas vezes parte de pessoas altamente gabaritadas, com milhares de horas de aula, como médicos e enfermeiros, que fazem piadinhas com a mulher que viveu uma violência. Foi o que comprovaram alguns dos cientistas- entre eles a meia-irmã dos meus filhos- que estiveram em Porto Alegre para o encontro da Abrasco, Associação de Saúde Coletiva, na semana passada.

Os nossos preconceitozinhos mais banais e pouco acessados podem ser a força motora de violências muito maiores e mais profundas, mas uma coisa com certeza se pode afirmar, as violências mais escancaradas não serão sanadas enquanto não decidirmos tratar de fato essas minúcias corriqueiras, que têm ainda alguma graça.

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