Apoio à Lei Estadual nº9.176, sobre a reforma psiquiátrica e do movimento anti-manicomial que patina desde a década de 1980 no Brasil por meio de importantes vozes políticas da psiquiatria, como a do psiquiatra Carlos Salgado, presidente da Associação de Psiquiatria do Rio Grande do Sul. Na última quinta-feira ele escreveu artigo no jornal Zero Hora. Como ele, a maior parte dos psiquiatras é contra a lei, é a voz oficial da psiquiatria não apoiar a formação de comunidades terapêuticas, não aprofundar os laços familiares e a compreensão dos distúrbios de afeto. Por trás da polêmica, há a indústria de laboratórios e muito corporativismo.
Em tempos de defesa dos manicômios, de grandes centros de contenção para os doentes mentais, compartilho essa ficção.
Cláudia Rodrigues
Encontrou-a de costas na cozinha, parecia estar fazendo café, mas quando se aproximou enlaçando-a carinhosamente pela cintura percebeu, apenas pelo olhar, que a doença havia voltado, manifestava-se como um pesadelo depois de 7 anos. Ela começou a falar sem parar, já havia separado várias caixas com objetos da casa para doar e pela quantidade de coisas estava claro que não dormira. Ele tentou conversar, explicar sobre a doença, mas Ela estava alta demais, pairava, apenas pairava, não se comunicava mais com a realidade. Havia acontecido de novo e Ele mais uma vez não iria interná-la, precisava organizar as coisas, cuidar do filho, ligar para o psiquiatra, esperar passar a crise.
O médico recebeu-os eufórico, ele mesmo parecia estar em surto de animação pelo novo medicamento para TAB, Transtorno Afetivo Bipolar, doença psíquica caracterizada por alternância de fases de depressão e hiperexcitabilidade.
Mudariam o remédio. Ele tentou explicar que a velha medicação estava funcionando bem, mas Ela, por algum motivo, não vinha tomando regularmente; a suspensão do remédio era o fator desencadeante da crise. O Dr. não quis saber, a nova droga era excelente, sem vários dos efeitos colaterais do antigo regulador de humor, seria perfeita para os sintomas dela, estava decidido e prescrito, era hora de mudar porque a doença progredira e agora havia um medicamento novo a ser experimentado.
Ela parecia até que bem para alguém em surto, colocou umas roupas para lavar, começou a rabiscar um desenho, mas de repente achou que a máquina estava lenta demais, retirou as roupas de lá ainda ensaboadas e começou a torcê-las manualmente. Ele foi ajudar, ofereceu para enxaguar, mas Ela deslanchou lindamente sobre uma teoria nova de lavagem de roupas, era necessário deixar um pouco de sabão porque assim se manteriam livres dos germes e bactérias por mais tempo e ficariam praticamente engomadas, afinal quem foi que desinventou a goma e por qual motivo? E o anil, a trouxinha azul anil onde estavam usando? Em balas e guloseimas e não mais nos jeans?
À noite inventava mil receitas para fazer com o filho, ficavam ambos lambuzando-se com doces, tortas e bolos na cozinha até de madrugada. E assim foram levando, Ele sempre achava melhor não contrariar, nas experiências anteriores havia funcionado melhor trazê-la para a realidade por meio de uma comunicação mais direta e carinhosa com aquele mundo interno bizarro. Medicação, afeto e liberdade vigiada eram as melhores opções, mas o novo medicamento não dava sinais de ajuda. Ela piorava visivelmente, o antidepressivo de alguma maneira parecia estar alterando o desenvolvimento da doença, Ela estava mais acelerada, não deprimia, não oscilava mais. Ele ligou para o psiquiatra que insistiu na mesma medicação, acrescentando um remédio para dormir. As coisas foram degringolando, ela dormia mal, passava a manhã apatetada rindo sozinha, não desenhava, não pintava, não lia, não fazia qualquer coisa que gostasse; sintomas que Ele não vinculava como sendo da doença. O médico explicou que era normal, que bipolares apresentavam novos sintomas a cada crise, ele sabia, estudara para isso.
Conforme o dia avançava, Ela voltava a uma aceleração exagerada, bastante incomum em comparação com as outras crises. O médico insistiu, aumentou a dosagem de ambos os medicamentos explicando que os familiares, leigos, não sabiam diferenciar o que era sintoma da doença do que era efeito colateral das drogas. Ela piorava a cada dia, dormia mais e quando acordada já não se comunicava, não fazia mais farra com o menino pela casa, não recitava teorias e nem versos de seus poetas favoritos. Ele a levava para passear e Ela apresentava novos sinais, agora de vazios, brancos, falta de memória. Ele chorava sozinho debaixo do chuveiro, já não era um homem, não sentia mais desejo, queria Ela inteira, a vida deles de volta, nenhuma crise dela havia passado de 15 dias, aquilo se estendia já por dois meses. Ele estava exausto, abatido, começava a fantasiar uma internação para poder viver, jogar futebol com o menino, apenas respirar sem ter que pensar minuto a minuto na doença dela, nos sintomas dela, na falta de prazer que havia tomado conta da vida tão boa que viviam. Parecia inútil lembrar dos últimos anos, repletos de prazer: Ela sempre tão sensata, cheia de idéias, realizadora, sexualmente criativa, de bem com a vida, pessoa denominada como genial pelos colegas e amigos. Riu sozinho, com o canto da boca, ao recordar de quando se apaixonou, sabia que Ela era rara, sempre soube desde o primeiro momento, mas não imaginou que existiriam esses raros episódios, 1% da vida deles, 1% de insanidade em altíssima intensidade que colocava todo o amor em questão. Como uma pessoa poderia virar do avesso daquele jeito?
Naquele final de tarde Ela foi firme, não quis ir junto buscar o menino na escola, Ele foi correndo, apreensivo deu um sorvete para o pequeno, que já não era tão pequeno, aos 8 anos perguntou se mamãe estava melhor e Ele então percebeu que as coisas seriam ainda mais difíceis com uma criança maior, não sabia como explicar, se devia explicar e apenas disse que sim, mamãe estava melhor e iria ficar boa logo.
Chegaram em frente ao prédio, Ela estava a descer da cabine do caminhão do lixo, íntima dos lixeiros, anotava num bloquinho as falas deles e dezenas de dados sobre os itens recolhidos, as histórias de machucados com vidros e latas, os incríveis achados nos lixos dos bairros mais ricos. Ele se aproximou gentilmente, ajudou-a se despedir dos novos amigos, com quem Ela jamais havia falado antes. Em casa tentou lembrá-la disso, que nunca havia falado com os lixeiros, muito menos dado uma volta no caminhão. Para Ela aquela lógica dele era machista, descabida, discriminatória, puro preconceito de classe! Segundo ela o mundo ia mal, muito mal, muitos excessos e muitas faltas.
O que faz falta para você no mundo?
Entenda, querido, os excessos estão aí, olha só quantos dados coletei com os lixeiros, mas como posso organizar isso se já não existe mais fita para minha Remington? Antes uma fita se encontrava em qualquer papelaria barata, qualquer armazém de esquina, agora temos tantas papelarias chiquérrimas, supermercados, esses labirintos de consumo, mas não se encontra nessa imensa cidade uma simples fita para máquina de escrever!
Querida, tente colocar os dados no computador.
Ah que ótima idéia, como fui esquecer do computador!?
Ele a abraçou carinhosamente, deu o medicamento, abriu a planilha na tela e foi ajudar o menino nas tarefas da escola. A vizinha bateu na porta, trazia as roupas secas do varal, misteriosamente elas estavam na sua área de serviço. Ela levantou-se rapidamente da cadeira e recebeu a vizinha, convidou para sentar e foi passar chá com biscoitos moídos na cafeteira, como se fosse a coisa mais normal do mundo. Mais naturalmente ainda explicou que Ela mesma havia jogado as roupas para a área de serviço ao lado porque aquela era uma labuta muito chata e os vizinhos precisavam ajudar. Percebendo a indignação da vizinha, Ele intercedeu, pediu desculpas encaminhando-a até a porta e após a mulher ir-se, desentendida da situação, sentou-se com Ela e explicou que aquilo não seria tolerado, que Ela precisava se concentrar em um papel social aceitável ou então precisariam interná-la. A idéia da internação apavorava-a, Ele não gostava de ameaçá-la, mas às vezes era necessário, apenas funcionava e às 22h, depois de um dia interminável, as coisas simplesmente precisavam funcionar. Ela foi chorar acocorada num canto, mais parecia um animalzinho machucado, em nada lembrava a figura linda, ponderada, equilibrada, a mulher brilhante, organizada, competente, concentrada, tão amável, tão amada.
Ele precisou deixá-la ali, talvez viesse a depressão, de qualquer forma Ele precisava colocar o menino para dormir, dar um beijo de boa noite.
Papai, mamãe é louca?
Não, não é.
Mas na escola estão dizendo que ela é louca e eu acho que ela é louca, eu acho, você está mentindo para mim, está mentindo, mentindo!
Ah sim, filho, as pessoas usam esse nome, essa palavra “louca” para definir tudo aquilo que não entendem sobre inteligência e sensibilidade. Você acha que uma pessoa certa, qualquer pessoa, qualquer outra mãe pinta esses quadros bonitos assim como sua mãe? Você sabia que pessoas certas nunca entram de roupa dentro do mar, como sua mãe entrou com você no último verão?
Pai, eu lembro do sabiá que ela criou comigo aqui na área de serviço, ninguém acreditava que ele seria nosso amigo sem gaiola e ele é nosso amigo até hoje, e sem gaiola! Tia Cris chamava mamãe de louca por causa do Salíbero, mas isso é mesmo uma inteligência.
Sim, isso mesmo, as pessoas que são chamadas de loucas fazem coisas que as outras não entendem porque as outras não são capazes. As outras também têm nome, mas nós somos elegantes e não usamos esse nome para defini-las porque não há razão para separar as pessoas em nomes tão assustadores.
Que nome têm as pessoas certas, pai?
Elas se chamam normopatas, mas não usamos, ok? Fica segredo entre nós porque chamar as pessoas de normapatas é dizer que elas são meio burrinhas, não sabem voar em pensamentos, muito menos em atitudes e ainda vivem condenando a liberdade de pensamentos e ações dos outros.
Pai, ela vai ficar assim inteligente para sempre, jogando as roupas na casa da vizinha, colocando bolo para assar no sol, andando com os lixeiros? É que eu prefiro mamãe mais burrinha mesmo, essa coisa pata aí.
Ela vai ficar boa, vai ficar mais burrinha e certinha, nós vamos acertar um bom remédio normalizador de mamãe e nós vamos ter a nossa vida de volta, só mais uns dias, vamos ter paciência, o importante é que nós sabemos e não podemos esquecer que ela é muito legal e nós gostamos muito dela, para sempre.
Sim, pai, boa noite, nós amamos mamãe para sempre…Pai?
Sim…
Você acha que eu sou muito inteligente e sensível ou normal pato?
Hummm, você é na medida exata.
Como você sabe qual a medida exata?
Eu não sei, é tudo por enquanto, as coisas vão mudando, nós vamos buscando, encontrando as soluções, o importante é nunca desistir do caminho do meio, entre os loucos e os normopatas.
Na manhã seguinte Ela estava quase normal, suava e tremia muito, mas já havia telefonado para a cunhada vir buscar o menino, estava com anotações de nomes e telefones de vários psiquiatras.
Olhou para Ele e muito seriamente perguntou se o seu comportamento naquela manhã parecia minimamente aceitável socialmente. Ele sorriu e disse que sim, enquanto colocava um casaco sobre seus ombros.
Então se prepare para não enfurecer porque faz 24 horas que não estou tomando as novas drogas, eu burlei, senti que o remédio estava errado, preciso voltar a tomar minha medicação e quando estiver bem devo me convencer a não burlar e continuar tomando, sistematicamente. Vamos a outro médico? Pode ser?
Pode, vou te ajudar, nós vamos conseguir de novo.
Segundo pesquisa realizada pelo Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo, o Transtorno Afetivo Bipolar atinge 8,3% dos paulistanos.
No Brasil estima-se que quase 3 milhões de pessoas sejam portadoras de TAB e mais da metade delas não faz o tratamento adequado.
A doença, que inicialmente foi denominada como Psicose Maníaco Depressiva, leva em média 10 anos para ser diagnosticada. É comum ser confundida com esquizofrenia e o uso de álcool ou outros psicoativos pode dificultar tanto o diagnóstico quanto o tratamento.
O uso de antidepressivos e anticonvulsivantes em bipolares deve ser cuidadoso, criterioso e nunca generalizado.
A bipolaridade não tem cura. Quando tratado adequadamente o bipolar apresenta comportamento normal e por isso para de tomar a medicação preventiva.
O histórico do paciente deve prevalecer sobre qualquer marketing vindo dos laboratórios.
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