segunda-feira, 1 de março de 2010

Airos

Por Cláudia Rodrigues

Sofria a senhora, cabelos mal-pintados, ressecados, empurrados pelos fios brancos que surgiam rente ao couro cabeludo, para subir as escadarias do prédio da prefeitura. O excesso de peso dificultava seus movimentos, havia carregado no perfume para disfarçar o cheiro de suor, que tão facilmente azedava entre as infinitas dobras de seu corpanzil.

Ao entrar na sala foi recebida com reverência pelas amigas, colegas de longa data na mormacenta vida pública de Airos, uma cidade que separava seus cidadãos em os do centro e os do lado de lá. Eram sete colegas no total, sete pessoas entre sete centenas de contratados e comissionados, sem contar os prestadores de serviços. E que mundos e fundos sete pessoas poderiam mover numa reunião de alcova? Eram sete nomes

do centro, só isso já dava 100 agregados por sobrenome.

Aquelas sete senhoras viciadas em doces, compras, cirurgias plásticas e novelas não trabalhavam para melhorar o mundo e tinham absoluta certeza que melhorar Airos era promover bailes, competições e quermesses para divertirem-se e darem as sobras para os habitantes do lado de lá. Há anos empurravam o serviço da prefeitura, há anos rodavam as cadeiras com solidariedade entre as famílias do centro. Um dia foram surpreendidas por alguém novo assumindo um cargo de confiança, alguém determinado apenas a trabalhar. Uma mulher com formação para a área, uma mulher vinda da capital, uma mulher que iria descobrir coisas que não devia, uma mulher que causou desconforto imediato era o principal motivo da reunião.

Gambréia foi saudada assim que abriu a porta. Era a última a chegar, como era bom estar ali entre amigas depois de ter perdido o cargo. Sabiam, de anos de convivência, detalhes das famílias do centro; comiam nos mesmos restaurantes, frequentavam o mesmo clube e aspiravam o mesmo sonho: viver e morrer em Airos sendo donas de Airos. E por esse sonho lutariam até o fim e usariam todos os meios. Primeiro era necessário destilar toda a inveja que sentiam pela jovem que fora contratada para a chefia do departamento e motivos não faltavam: era jovem, com excelente formação, linda e de uma magreza que ofendia todas as habitantes da pacata cidade de Airos.

O fato da moça fazer serão trabalhando além da conta era visto como puxa-saquismo, seus estudos e habilidades comprovadas para a função; desmerecidos, colocados em dúvida a cada reunião chefiada por ela. Mas aquela reunião, daquela tarde abafada de verão, era especial, a nova chefe de departamento obviamente não havia sido convocada. Sua ausência por viagem profissional fora a oportunidade ímpar para o encontro do grupo das sete. Em qualquer lugar do mundo um encontro desse naipe teria sido marcado num ponto neutro ou na casa de uma das sete, mas em Airos tudo é possível, em Airos tudo é mais possível.

A questão era séria, a moça estava agradando o prefeito, o secretário, as populações ribeirinhas, que vinham sendo mantidas no descaso por anos a fio e o mais incômodo de tudo: agradava aquele pessoalzinho que não era de Airos, mas vinha invadindo Airos para morar. Ah que antipatia sentiam e como trabalhavam de segunda à sexta para jogar areia nos olhos da Gaijin.“Também, fica trabalhando até 9 da noite”, exclamou Medéia. “É, bem sei que eles não param de olhar é para as pernas dela”, retrucou Valdinéia. “O problema é que ela se acha mais do que é”, arrematou Luzinéia.“Esse olhar docinho que ela tem para encantar os pobres só pode ser falsidade”, alfinetou Lucinéia.

“Ora, parem com isso e vamos às ações concretas, é preciso comprovar a incompetência dela”, exigiu Arimatéia. Houve um silêncio geral, cortado pela voz metalizada de Ganbréia, que havia perdido o cargo para a jovem. “É preciso que eu saia do departamento, como já estou trabalhando aqui tem 20 anos, é até melhor para mim cumprir mais dois pares de ano numa escola que tenha difícil acesso e então o movimento para tirar a Oncinha da jogada vai ter mais legitimidade”.

Tatéia, que até então não havia dado uma só palavra, segurando a ansiedade com golfadas em sua bombinha de corticóides, resolveu dizer o que pensava e do jeito que sempre fazia, com uma vozinha mansa, oposta ao seu corpo manipulador, de ombros largos que se mexiam lenta e conjuntamente com o par de olhos verdes, miudinhos, traiçoeiros. Ela era a única que não havia nascido em Airos, lutava muito para ser considerada uma cidadã de Airos e aquele cargo era seu sonho. “Não é porque tenho o maior número de anos ao lado de Gambréia que devo ficar com o cargo quando a inominável se for, mas acho que devemos estar prontas para agir rapidamente porque o tombo dela será feio e irrecuperável. Gargalhadas gerais entre as sete e a decisão imediata, apadrinhada por Gambréia, de quem seria a eleita: Tatéia, obviamente.

Era necessário registrar todo e qualquer escorregão, a mínima palavra da chefe. Era necessário aproximar-se de sua vida pessoal, descobrir o que realmente ela sentia e falava na intimidade, entre os seus. Não era possível um ser humano passar o dia inteiro desviando-se de armadilhas e não expressar qualquer sentimento ruim, não desabafar sobre a pressão que sentia. Aquele peixe ia morrer pela boca, era só questão de tempo. Ganfréia levantou a questão de como ela havia chegado ao cargo, o povo de Airos não seria derrotado assim pela esposa do dono da nova empresa estabelecida na região.

Arimatéia interrompeu; era preciso ir com cautela na questão de que o diretor da empresa havia “conseguido” o cargo para ela junto ao prefeito, era preciso ter cautela com tudo aquilo que envolvesse os donos de Airos. Eles precisavam ser poupados ou a luta estaria perdida.

“Mas se não apelamos para algum tipo de ilegalidade como comprovar e eliminá-la?” perguntou Lucinéia. Tatéia sorriu maliciosamente mostrando-se surpresa pelas comparsas ignorarem que o maior golpe, o que derrubava impérios desde o início da civilização era algo facílimo de ser feito e sem grandes arroubos de inteligência: a fofoca, mexericagem, intrigas.

Era preciso aumentar o número de antipatizantes e neutralizar os simpatizantes, contaminar cada bloquinho do centro e do lado de lá. As línguas ferinas não iam parar, tudo precisava parecer muito normal, amistoso, respeitoso, as aparências seriam defendidas com unhas e dentes porque afinal o objetivo teria que ser alcançado, não importavam os meios.

Enquanto o grupo das sete comemorava o final da reunião e seu possível efeito multiplicador no Baile das Coroas, tradicional baile de Airos, Gaijin, já de volta da viagem, preparava pensativa, quase triste, o jantar do filho de 3 anos.

O marido a surpreende entrando pela porta, animado por ter conseguido eliminar o que chamou de uma laranja podre na empresa. “Em termos de competência, sabe querida, esse funcionário apresentava excelentes resultados, gostei muito da independência dele, era um tipo que abaixava a cabeça e fazia seu trabalho, alta produtividade e envolvimento, mas recebi várias queixas contra ele, queixas formalizadas, assinadas por praticamente toda a equipe do departamento. Ele seria esse tipo de pessoa sem habilidade para lidar com outros seres humanos. Uma coisa inacreditável porque ele era do setor de Recursos Humanos, eu não poderia mesmo deixar que ele continuasse, afinal alguém para trabalhar no RH tem que ser educado, solícito, não deve ter problemas de relacionamento humano. Primeiro acreditei que fosse questão de adaptação, ele veio de fora, não é daqui, mas depois que recebi tantas e tão reiteradas queixas do pessoal de confiança daqui, só mesmo demitindo-o, assim todos ficaram contentes, eu vi o alívio que causou e eu mesmo sinto-me aliviado”.

Gaijin, consente que o filho vá brincar mais um pouco antes de dormir, mas não disfarça a incredulidade do olhar. Um abismo mudo e profundo surge entre os dois. Ele finge que não sabe o que está acontecendo, ela finge que não sabe que ele finge que não sabe o que está acontecendo. Ela não diz uma única palavra, não há nada a dizer, é tudo muito simples e ao mesmo tempo muito complexo, muito conectado e muito sem nexo. O filho adolescente do vizinho liga o rádio que repete uma frase de Salomão ao som de um rock dos Titãs: “Nada de novo debaixo do Sol.

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