domingo, 26 de junho de 2011

Nasci pobre num imenso lar




Dedico essa republicação ao amigo Oscar Krost, que leu o livro e apontou como preferência esse texto


 Cláudia Rodrigues

Pois é, mamãe, moramos num lugar que foi apelidado de favela e aqui tem todo tipo de gente, inclusive e principalmente gente amiga e muito boa. Somos todos pobres.
É difícil explicar e entender porque se nasce pobre. Eu mesmo não percebo direito qualquer diferença entre pobres e ricos, papai tem certeza que pobreza se vence com muito estudo e trabalho honesto; ele lamenta que tenha ficado só com a parte do trabalho honesto e para mim planeja muito estudo. Há muitas teorias sobre a pobreza, muitos doutores escrevem sobre isso, mas de maneira geral doutores não são pobres, então papai deve estar com a razão. Como todos os pobres não temos automóvel, não compramos em shoppings e nossa comida é regulada, mas nunca passamos fome. Você é muito criteriosa e na gravidez comeu bem, abusou do que estava mais em conta, como frutas, legumes e verduras da estação, separava sempre uma porção de leite e carne e chegamos ao dia do parto com muita saúde. Isso porque você é pobre, né, mas não é ignorante e sempre soube o que devia ou não comer e fazer para que eu me desenvolvesse muito bem durante a gestação.
Meu carrinho é usado, meu berço emprestado, meu enxoval foi de costureira e doação, mas quando dei sinal de que seria o dia tão esperado do parto tudo já estava preparado para minha chegada. A bolsa rompeu no meio da noite e como você não sentiu qualquer dor, resolveu esperar o dia amanhecer para avisar ao papai. Vocês tomaram banho, depois café com leite, pão com manteiga e às 8h estavam no ponto do ônibus, que chegou atrasado e ainda furou o pneu no meio do caminho. Você começou a sentir as tais dores do parto e avisou papai que a coisa estava apertando. Papai ficou muito nervoso, ele disse que queria ser rico nesse momento, só para te levar ao hospital de táxi. Você falou para ele sossegar e então ficaram abraçados esperando a troca do pneu; ele massageando sua barriga, suas costas. Eu na minha, mas já estava até entrando em sintonia com papai naquela história de táxis e ricos, eu queria nascer e merecia que o mundo se desdobrasse para que tudo saísse nos conformes. Pelo menos nos transformamos nas pessoas mais importantes do ônibus; o motorista avisou que não era possível mudar o trajeto, mas muita gente saltou antes, outras depois, tudo para a coisa andar a nosso favor. Só conseguimos chegar ao hospital quatro horas depois, já perto do meio-dia. Ainda ficamos numa fila e só quando você soltou um aiiiiii sonoro é que te encaminharam às pressas. Nasci quando deitaram você na maca e quem segurou minha cabeça foi a enfermeira. No aperto da situação ela acabou deixando que eu ficasse com você e mais do que depressa levei de brinde o seu peito. Papai ficou muito emocionado porque não contava com a possibilidade de me ver nascer. Ficamos ali por algum tempo, bem precioso para nós, depois nos separaram. Nada é perfeito nessa vida, mas dei conta e você também, até aproveitou para tirar uma soneca. Ganhei banho, touquinha, procedimentos da linha de montagem hospitalar e voltei para você cerca de duas horas depois, já faminto, pegando bem, como disseram as outras mães naquela sala lotada de mães com seus bebês. A enfermeira que me trouxe entregou a você um cartão que atestava minha nota:10. Nasci forte, grande e com todos os reflexos esperados para um recém-nascido. Oras, passei a sua gravidez toda escutando papai dizer que vou ser doutor, imagina se ia nascer dando uma decepção ao velho!
Hoje estou completando quatro meses, dia em que acaba sua licença-maternidade como doméstica na casa da Dona Laura. Mas você foi esperta, depois de trabalhar cinco anos com Dona Laura, não ignora que Dona Laura a empregou por não ter filhos e nesses meses de licença tratou de começar uma vida nova. Quando eu estava com um mês começou a prestar serviços para Dona Candinha, costureira que fez meu enxoval. Hoje seu trabalho já rende quase a mesma coisa que o trabalho como doméstica, só que você não tem que sair de casa, pegar ônibus, ficar horas longe de mim tendo que pagar para cuidarem de mim sem seu leite.
Além de inteligente, bebê nota 10, tenho ritmo, sei mamar e esperar, nunca fui chegado em cólicas e só entro numas quando você atrasa um pouco minha mamada por causa de um ponto a mais na agulha. Você é bem calma, herança da vovó baiana, deixa que eu chore um pouquinho e só me atende quando está inteira, com seu coração cheio de dó. Nunca com raiva, com pressa, prefere fazer o arremate do que lamentar o ponto mal feito comigo em seus braços. É, não sou o único inteligente aqui de casa, papai é pedreiro dos bons e você uma mãezona e tanto, costureira caprichosa, cheia de sabedoria ancestral. Os gastos com besteiras você corta todos. Não uso chupeta, não uso mamadeira e olha que estou batendo nos 7 quilos! Tomo meu banho diário no balde improvisado, mas exclusivo para mim, nunca tive assaduras, minhas fraldinhas de pano vivem voando ao sol no varal. Chique demais ser ecológico!
Sabe de uma coisa mãe? Eu sou um rico de um bebê, poucos bebês ricos têm tanto quanto eu, e nem todos têm o fundamental para um desenvolvimento como mandam os melhores doutores: afeto, asseio, ritmo e todas as necessidades atendidas pela própria mãe. É um luxo ser seu filho e se um dia eu virar mesmo um doutor e porventura mudar da favela para um desses apartamentos de frente para o mar, levarei comigo todo a elegância que aprendi no nosso imenso lar, que óbvio, né, mãe, jamais foi medido pelo tamanho da nossa casa.

* página 70 do livro Bebês de Mamães mais que Perfeitas - Centauro Editora

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