sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Dominique

Cláudia Rodrigues
Ko Samui, Tailândia, 1986 

O pó é amarelado, diferente da cocaína, mas brilha também, quase tanto quanto os olhos de Dominique quanto avista Jamaica se aproximando. Quem já está acostumado vai logo injetando, como Dominique, a primeira. Antes da seringa chegar ao fim da roda, antes ainda de Pio enfiar um pouco de heroína na ponta de um Marlboro, ela já sacode impacientemente os pés para ter um pouco mais da injetável, pouco se importando com o caco no cigarro dos iniciantes. É normal que ganhe mais, porque quer e parece precisar, mas principalmente porque está com Jamaica, o todo poderoso dos “cavallitos” .
O fogo nos aquece e na primeira tragada já vem a sensação de plenitude, o coração batendo muito diferente do que bate com a cocaína, quase o contrário, não há estufamento do peito, o primeiro sintoma que prenuncia o narcisismo que vem da coca. O peito não enche de ar; deprime, uma depressão quase agradável, um prazer poder contar as batidas do coração, uma a uma, como se nada mais pudesse importar além das batidas do coração. Mas pode parar a qualquer momento, entre uma batida e outra passa um tempo enorme, mas ao mesmo tempo que está lento, está mais forte, como todas as pulsações. Parece medo, a parte boa do medo, o desafio, aquele segundo exato em que se resolve enfrentar o medo. Parece amor, quando deságua a paixão e aquela mornitude se espalha do coração para o resto do corpo. Lembra um desejo da carne ansiando pela pele de alguém, é formigamento, excesso de inteligência ou sensibilidade. O fogo mais assusta do que aquece e, apesar do frio, não é mais possível dividir o ar com o grupo, a mata escura é a única saída. Tudo arde em centramento um segundo antes de reiniciar-se a descentralização de sentidos sem pensamentos, de tão rápido que vem e vai qualquer pensar. O vento tem uma missão maior do que esquartejar os pelos do corpo, as folhas têm uma missão maior do que chicotear os ouvidos, o solo úmido, a areia fofa, os coqueiros balançando; tudo faz um sentido incrível que se fecha num cerco de total ausência. O tudo e o nada se juntam bem perto, como o lado de fora e o avesso da pele. Dá para sentir a pele dentro e a pele fora e tudo é uma coisa só, de maneira que não existe vida dentro e fora ou como se fosse tudo vida da mesma espécie, sem separação apesar de tão amplos e variáveis compartimentos. Pertence-se aos ruídos e os ruídos pertencem, como a mata, que já estava dentro, agora verde e parada com a respiração tão lenta, quase tão lenta como a respiração dos cocais.

Gritos de horror chegam da praia. Jamaica está desesperado porque Dominique está desacordada.  Ela está azul, gelada e imóvel. Não vomita, não respira, o coração não pulsa. Está morta.
Não sabemos o que fazer com Dominique, estamos todos sob efeito da heroína, alguns haviam misturado com cogumelos, e esses, mais malucos, pedem que deixemos Dominique dormir até o amanhecer sozinha na praia, crentes de que ela acordará da viagem. O casal de ingleses inseparáveis, que só havia fumado maconha sem nem caquinho de heroína, parece ainda mais louco: a dupla some em direção aos bangalôs. Todos vão saindo à francesa e sobram quatro: Jamaica, Pio, Tass e eu. De repente forma-se um compromisso emocional entre nós, e o que nos une não é desejo, compaixão, solidariedade, ternura ou qualquer outro sentimento que habitualmente alimenta e arrasta por anos a fio os relacionamentos mais descabidos, enganchados no grude clássico a que muitos dão o nome de amor. O que nos prende na areia insípida, rodeando o corpo morto de Dominique, é algo mais requintado. Não é morbidez. Poderia se aludir algum sentimento nobre, envolto em culpa, como um senso de responsabilidade, nossa capacidade de prestar socorro sem medir conseqüências pessoais, e aí chegaríamos por uma questão lógica à solidariedade, assim seríamos boas pessoas, honestas, éticas, que prestam socorro. Mas seria insincero, no mínimo, dizer que estamos aqui por solidariedade à vida de Dominique, que jaz, nada mais. Estamos aqui porque todo morto é um ponto de atração aos seres que o amaram. É impossível não amar Dominique, mesmo sabendo que ela não vai mais gargalhar gostosamente e nem chorar copiosamente ao falar de sua família, o pai e a mãe ausentes, bem-sucedidos, distantes, os irmãos que se enquadraram e ela, tão inadequada desde pequenina, tão carente, tão gente, tão delicada e amorosa, tão ardidamente entregue nos braços negros de Jamaica.

Uma formiga sobe pelo calcanhar de Dominique, rapidamente chega ao dedo médio, enfia-se ali por um instante e desliza sobre o peito tombado do pé. Formigas gostam de mortos do mesmo modo que gostam de sanduíches, farelos e restos de pele morta que se desprende dos corpos dos vivos. Morre-se um pouco a cada minuto, mas pode-se morrer totalmente apenas uma vez.

Esta tão ruim ali, tão difícil, fixei o olhar na formiga, as formigas são tão iguais em qualquer lugar.

Pireus, Grécia, alguns meses antes 
A botina do policial grego, que entrou para mostrar que falava inglês, pisou na formiga matando-a de um golpe só.
>>Vamos, tire suas roupas, você precisa provar que não está escondendo nada aí. Enquanto ele falava coisas assim, em um inglês quase ininteligível, sob um mau-hálito internacional, típico de gente que come mal, dorme pouco e assiste muita televisão, uma mulher examinava as costuras da minha mochila me obrigando a assistir o desfile de minhas roupas e objetos pelas mãos de vários policiais gregos no porto de Pireus. Mas não tirei a roupa e sim a carteira de identidade onde estava escrita a palavra jornalista em garrafais vermelhas. Aquilo não era nada grego para eles, mas de alguma forma entenderam que eu estava dando algum tipo de carteiraço. Nunca vou saber se foi meu choro, meu desespero ou a carteira de jornalista que fizeram aqueles infelizes me darem a liberdade de embarcar no navio para o porto de Haifa, em Israel. Só sei que alguns minutos depois eu estava sentada com mais um monte de mochileiros esperando o embarque dos bacanas terminar. Não tinha coragem suficiente para chorar, eu era o medo vestido de gente.
O mar era de porto, água quase parada, verde-escura, o por-do-sol era triste e eu era um coelho assustado embarcando para um país desconhecido e em eternas guerras por disputas de território. Um coelho que havia marcado uma viagem no dia em que vencia a passagem de volta para o Brasil. Naquela época conseguia-se uma passagem bem barata quando a data marcada para voltar não ultrapassava sessenta dias. E era isso, haviam passado sessenta dias e eu queria algo mais, algo inexplicável me fazia continuar, algo além do medo, após o desafio, que se aproximava de uma certa morte, quase como uma auto-comiseração. E era assim que eu estava, sentada com as pernas balançando sobre a imensa base de cimento do porto, já sem conseguir fingir a segurança de ser uma viajante que sabia seu destino, quando dois imensos olhos azuis me fitaram. Era um corpo que saiu do nada e que agora estava ali ao lado do meu, um corpo quente, bem vivo, dois olhos amigos e uma boca que me oferecia em alemão e inglês as uvas mais doces do mundo. Tive vontade de abraçar o desconhecido, me jogar em seus braços, chorar e contar tudo o que eu havia acabado de passar. Mas só aceitei cinco uvas do cacho e ofereci pistache, o bom pistache da Grécia. Karl achou que eu estava com medo de viajar de barco e só então tive consciência de que meu medo era aparente. Contei em poucas palavras, me fazendo de valente, sobre a batida da polícia grega, que achava que eu tinha alguma droga. Ele começou a enrolar um cigarro alemão perfumado, logo explicou porque não comprava cigarros prontos. Daí foi um pulo para falarmos sobre a polícia na Alemanha, a polícia no Brasil, a polícia em toda parte a serviço de interesses supranacionais, internacionais; uma polícia tão longe do cidadão, tão incompatível com a realidade daquela jovem brasileira, euzinha, ali perdida naquele porto de Pireus.
Patrick escutou um rabo de conversa e se aproximou pedindo nossa comida. Resistimos por um breve segundo e abrimos entrada para o francês simpático, cheio de tranças nos cabelos compridos. Ele, como nós dois, era outro dos poucos viajantes solitários que haviam comprado passagem on the deck, a mais barata, a do povo que vai no deck do navio. Todos os outros mochileiros estavam em grupo, com exceção do galã, um sujeito que passou os três dias da viagem observando todos do alto, uma parte mais elevada do deck, onde ventava muito e ninguém escolheu para acampar. O deck era um acampamento com todas as letras. No final da tarde as pessoas acendiam fogareiros, preparavam sanduíches, comiam, bebiam e cantavam ao som de violões. Era grande o bastante para abrigar os vários grupos.
À noite fazia frio e ventava, Custávamos muito para dormir e ficávamos os três em nossos sacos de dormir olhando para o barco-céu. Deitados de barriga para cima, olhando as estrelas, o céu era um barco, se mexia lentamente de um lado para o outro.  
Quando o navio estava para atracar numa parada obrigatória, Chipre, houve um alvoroço. Era preciso trocar algum dinheiro pela moeda local. O banco do navio já parecia um outro país e nós éramos vistos pelos turistas como personagens raros, talvez um pouco assustadores. Perecia ser difícil a eles crer que tivéssemos necessidade de trocar algum dinheiro, como se não precisássemos comprar algo para comer, pelo menos, em Chipre, onde o comércio local não era barato, mas com certeza era mais em conta do que qualquer copo de chá no navio.
Descemos com todos e por alguns minutos ficamos iguais pisando pela primeira vez naquela ilha, caminhando sob a curva de uma montanha imensa que apostava numa vastidão de mar atrás de si. As ruas cuidadosamente asfaltadas, largas, e a melhor surpresa: figos e uvas pelas ruas, em quintais semi-abandonados. Em minutos largamos a via de acesso principal e nos separamos dos demais. As quatro horas passadas em Chipre gastamos andando pelos arredores, em direção a grande montanha, sem nunca alcançá-la. Patrick e eu queríamos ir, mas Karl argumentou que não deveríamos nos afastar demais sob pena de perder o barco e o dinheiro investido na passagem. Rimos juntos da quentura louca dos pensamentos meu e de Patrick e da razão acima de tudo de Karl. Decidimos sentar e comer as uvas e figos graciosamente furtados. E nisso, no quesito furto, Karl deu escuta a Patrick e a mim, afinal aqueles figos, não diríamos as uvas, estavam maduros para nenhum futuro em poucas horas. Era justo come-los. As uvas eram um luxo de delito, que só Patrick praticou.
Já estávamos voltando, em passos apressados, quando escutamos a primeira chamada do navio. Chegamos a tempo. Chipre ficou para trás e prometemos voltar.
A separação foi dolorosa. Havia beijos a serem dados, abraços, transas e o tal do inexplicável compromisso emocional, que se impusera tão forte entre nós. Os dois me queriam e eu queria os dois, mas terminamos singelamente sentados na estação de trem de Haifa comendo laranjas com biscoitos de água e sal. Os dois tentando em vão me convencer a ficar, queriam pagar o preço da passagem de trem para Telaviv, queriam me convencer a ir para Jerusalém, dizer não aos Kibbutz, conhecer o lado melhor do povo do povo de Israel. Eu estava segura de que queria me instalar em um kibbutz para dar um tempo e meu destino era um endereço de escritório que contratava e encaminhava voluntários para trabalhar no esquema. O trem chegou e eu fui deixando os dois para trás, parados, os olhos marejados, fui levando o gosto de biscoito de água e sal com laranja e mais uma saudade sem cura, que é a saudade do que não se fez, do que não se arriscou sentir, como a saudade dos amores platônicos da infância, alguma coisa pura e viva que nunca morre.



A formiga sempre deixa escapar um resto, talvez algo que a agrade mais, porque ao chegar ao tornozelo dá meia volta sobre o peito tombado do pé e enfia-se outra vez pelo dedo médio e depois, quase deslizando, com grande agilidade e rapidez, passeia pelo dorso, sempre dando pequenas paradas, aproveitando alimentos micro particulares; líquidos, gasosos, sólidos, deve ser um mundo imenso para ela a morte de Domique. Jamaica, sempre chorando, não pode perceber a vida tão próxima de Dominique, aquela dança entre as duas, a sensação de poder deixar acontecer tudo. Pio fuma um Marlboro normal afastado, olhando o mar. Tass mexe no fogo empurrando pauzinhos secos para as brasas. Posso sentir algum momento de paz porque eles não virão para matá-la, não afugentarão a pobre desse último calor que emana do corpo de Dominique. Ela perdeu a cor inicialmente azul, agora está branca sob o luar e sente, sem o escrúpulo separatista dos vivos, o carinho suave que rodeia seus pés. Não é mais aquele ser humano vivaz, angustiado e agitado que chegara há poucos dias de Haia. Já não precisa se preocupar com desculpas aos pais por ser quem é, sentir como sente, fazer o que faz, não é mais necessário optar entre ser mãe ou ser uma profissional bem-sucedida e muito menos precisará cair no calvário de ser uma nova miserável mulher em tripla jornada, na fila de algum câncer, um de seus medos confessos. Passando dos trinta anos, mesmo na contemporânea Haia, Dominique sofrera de um mal que a mim parecia ser endêmico de países subdesenvolvidos. Formigas são formigas em qualquer lugar, sempre podem ser pisadas por botinas que calçam homens com mau-hálito, em qualquer lugar. As diferenças não são raciais. Isso era muito evidente na relação entre Dominique e a formiga. A mesma Dominique que lamentara a ausência da mãe em sua infância, o desejo reprimido por um beijo sem batom, agora vive, com outro ser de uma raça totalmente diferente, a mais doce das intimidades: sem rejeição.


Qualquer semelhança com pessoas ou fatos reais é mera coincidência.

3 comentários:

  1. Muito bom texto!!! Fiquei com o coração na mão e muito curiosa para saber como tudo se resolve!!!

    Vontade de fazer parte de um pedaço dessa história, de ter coragem de viajar pelo mundo e viver relações!!!

    Beijos!

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  2. Flavia Alberta Gaiotto Melare30 de setembro de 2011 às 17:50

    Ai que saudades da minha fase de mochileira!!!
    Grande beijo
    Flávia Ishtar Sorocaba
    ps. o Enrico manda beijos p/ a Tami

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  3. Salve Flávia, você foi uma surpresa ótima no grupo. És muito especial.
    Tami também envia beijos para o "bebê" de Sorocaba. rsrs

    bjs.Cláudia

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